Certa vez, décadas atrás, fui a uma festa à fantasia. Não é só a Fátima
Bernardes quem faz dessas, não. Li a notícia sobre a apresentadora global
travestida de Mulher-Gato em uma festa desse quilate, dias atrás, e, ao invés
de logo me somar às hordas criticosas que não pensam duas vezes antes de
arremessar as pedras que parecem portar preventivamente nos bolsos, nesses
tempos em que externar ira se tornou a tônica essencial do ser (“odeio, xingo,
bato, logo, existo”, é o novo mantra), parei e pensei sobre mim mesmo, que
tenho telhado de vidro e, portanto, não posso arremessar pedra alguma. E nem o
faria, pois não sofro da síndrome de catapulta.
Mas deixemos a Mulher-Fátima-Gato-Bernardes de lado e falemos de mim.
Deu-se o fantasioso ocorrido lá pelos anos 1980, quando contava eu a singela
idade de uns 14 ou 15 aninhos. Uma colega de aula decidiu promover em sua casa
uma festa à fantasia num sábado à tarde e convidou a turma toda. A credencial
para ingressar no evento era, como ficou explícito no convite, aparecer
fantasiado. Há anos eu possuía uma chapa de plástico com dentes de vampiro, que
encomendara pelo correio, e era a oportunidade que eu tinha de colocá-la em
ação: iria de vampiro. Conivente (como sempre), minha mãe ajudou: passou gel em
meus cabelos, repuxados para trás; pintou rugas salientes em minha testa; empalideceu-me
com talco; criou olheiras com rímel; confeccionou a capa vermelha com uma saia
antiga. Eu ainda recortei em cartolina preta dez unhas compridas que colei nos
dedos com durex e pintei um bigode. Dráculakirst foi à festa, e arrasou!
A questão é que, dedicado ao papel a que me propusera, eu encarnei o
personagem a festa inteira. Não tirei a chapa em momento algum e, assim, vi-me,
ao final do ágape, privado de ter comido o bolo, os croquetes, os brigadeiros,
os pasteizinhos (e não, não mordi nenhum pescoço, eu ainda era um Draculinha
inocente). Bebi Minuano Limão de canudinho, e foi só. Percebi então que havia
me dedicado de corpo e alma ao papel que decidira representar, e o fiz do
início ao fim. Que é como deveria ser ao longo da vida inteira: dedicarmo-nos
de corpo e alma aos papeis que optamos por assumir. Se decidimos ser pais, que
o sejamos de corpo e alma. Se decidimos ser profissionais, que o sejamos
integralmente. Políticos, maridos, esposas, estudantes, cidadãos... Nem que
para isso tenhamos de abrir mão de algumas guloseimas e ficarmos só no
canudinho ao qual o papel escolhido nos restringe. Precisamos vivenciá-lo de
corpo e alma. Afinal, não se pode ser um vampiro meia-boca.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 29 de janeiro de 2018)
Nenhum comentário:
Postar um comentário