segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Se vampiro, vampiro total

Certa vez, décadas atrás, fui a uma festa à fantasia. Não é só a Fátima Bernardes quem faz dessas, não. Li a notícia sobre a apresentadora global travestida de Mulher-Gato em uma festa desse quilate, dias atrás, e, ao invés de logo me somar às hordas criticosas que não pensam duas vezes antes de arremessar as pedras que parecem portar preventivamente nos bolsos, nesses tempos em que externar ira se tornou a tônica essencial do ser (“odeio, xingo, bato, logo, existo”, é o novo mantra), parei e pensei sobre mim mesmo, que tenho telhado de vidro e, portanto, não posso arremessar pedra alguma. E nem o faria, pois não sofro da síndrome de catapulta.
Mas deixemos a Mulher-Fátima-Gato-Bernardes de lado e falemos de mim. Deu-se o fantasioso ocorrido lá pelos anos 1980, quando contava eu a singela idade de uns 14 ou 15 aninhos. Uma colega de aula decidiu promover em sua casa uma festa à fantasia num sábado à tarde e convidou a turma toda. A credencial para ingressar no evento era, como ficou explícito no convite, aparecer fantasiado. Há anos eu possuía uma chapa de plástico com dentes de vampiro, que encomendara pelo correio, e era a oportunidade que eu tinha de colocá-la em ação: iria de vampiro. Conivente (como sempre), minha mãe ajudou: passou gel em meus cabelos, repuxados para trás; pintou rugas salientes em minha testa; empalideceu-me com talco; criou olheiras com rímel; confeccionou a capa vermelha com uma saia antiga. Eu ainda recortei em cartolina preta dez unhas compridas que colei nos dedos com durex e pintei um bigode. Dráculakirst foi à festa, e arrasou!

A questão é que, dedicado ao papel a que me propusera, eu encarnei o personagem a festa inteira. Não tirei a chapa em momento algum e, assim, vi-me, ao final do ágape, privado de ter comido o bolo, os croquetes, os brigadeiros, os pasteizinhos (e não, não mordi nenhum pescoço, eu ainda era um Draculinha inocente). Bebi Minuano Limão de canudinho, e foi só. Percebi então que havia me dedicado de corpo e alma ao papel que decidira representar, e o fiz do início ao fim. Que é como deveria ser ao longo da vida inteira: dedicarmo-nos de corpo e alma aos papeis que optamos por assumir. Se decidimos ser pais, que o sejamos de corpo e alma. Se decidimos ser profissionais, que o sejamos integralmente. Políticos, maridos, esposas, estudantes, cidadãos... Nem que para isso tenhamos de abrir mão de algumas guloseimas e ficarmos só no canudinho ao qual o papel escolhido nos restringe. Precisamos vivenciá-lo de corpo e alma. Afinal, não se pode ser um vampiro meia-boca.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 29 de janeiro de 2018)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Com fé na saga, aí vai

No final das contas, tudo pode ser resumido a uma questão de fé, o termo “fé” aqui empregado, nesta reflexão de segunda, não no sentido religioso, mas mais especificamente em consonância com a quinta descrição oferecida pelo Dicionário Aurélio: “crença, confiança”. Tudo é uma questão de confiança, então, poderia ter de imediato iniciado a escrever o mundano cronista, mas aí se perderia um pouco do glamour e do sabor do texto, que, a bem da verdade, são os elementos que acabam capturando a atenção dos cinco ou seis leitores que ainda insistem em palmilhar estas mal-digitadas linhas; quatro ou três, descontando-se aquele que sei ter viajado para o Norte e que se recusa a acessar os textos por internet estando assim, tão distante, que se há de fazer. Mas, tergiverso.
Queria era conversar sobre a força do crer, reflexão que tomou de assalto meus pensares ao ler uma passagem do livro “A Volta do Gato Preto”, em que o escritor gaúcho Erico Verissimo, em sua estada de alguns anos nos Estados Unidos, na década de 1940, relata o encontro que teve com o romancista francês Julien Green, quando naturalmente trocaram ideias sobre as nuances do ofício que os unia: a escrita literária. Green, autor bastante incensado no mundo ocidental (inclusive no Brasil) em sua época (hoje injustamente esquecido), afirmava a Verissimo que “o essencial para um romancista é acreditar na história que está contando. Sem sinceridade, não é possível escrever-se uma boa história”. Verissimo escuta e reflete que sim, o escritor precisa ser o primeiro a crer, a ter fé, nas coisas que ele próprio inventa, antes de arremessar essas coisas no colo do desavisado leitor e esperar que ele nelas deposite também sua momentânea fé de leitor, a fim de que se estabeleça o pacto da leitura. Está certo Julien Green. Sem fé, nada feito.

Assim é na vida “de mentira” vivenciada pelos personagens nas vidas de papel e assim também é na vida de verdade, vivenciada por todos nós, personagens de carne e osso a transitarmos pelo palco de uma vida concreta que às vezes nos soa tão irreal e inverossímil que parece estarmos a desempenhar o papel estabelecido por um roteiro de ficção. Precisamos nos municiar diariamente de cavalares doses de fé, de crença em nós mesmos, em nossa capacidade de enfrentar os obstáculos e sermos quem somos ou quem nos propomos a ser, para que nossas biografias tenham credibilidade no entorno. Mas para que creiam em nós, precisamos, antes, nós mesmos acreditarmos em nossas próprias pessoas. Às vezes o mais fácil é ler uma obra de ficção. 
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 22 de janeiro de 2018) 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Limão amargo, doce limonada

Nós, que esta gaúcha Serra habitamos, já conhecemos bem o disco, sabemos a letra de cor e salteado: nosso clima é volúvel, instável, poderíamos até dizer... desequilibrado, se isso não soasse desabonador demais a ele. Pois é aquela coisa, quem nasce aqui ou elege essas aragens para morar, precisa se acostumar a essas instabilidades temporais que revestem as 24 horas de cada dia com uma aura de aventura climática capaz de enregelar os nervos, elevar a temperatura da paciência, resfriar as imunidades e ventar para longe o humor. A expressão “faça chuva ou faça sol” não tem sentido na nossa região, onde faz chuva, sol, cerração, vento, granizo, calor, frio e umidade tudo ao mesmo tempo, em um desfile digno de corso alegórico.
E frente a esse imutável quadro tão mutável, o que fazemos? Reclamamos, que é só o que nos resta fazer, pois não? Não! Não mesmo. A verdade é que as coisas podem ser diferentes, mais suaves e poéticas, o que, em face à irreversibilidade do temperamento do clima, pode vir a ser mais benfazejo ao equilíbrio de nossas temperaturas psíquicas internas. Veja só de que maneira reagiu, por exemplo, o escritor gaúcho Erico Verissimo (1905 – 1975) quando deparou com uma situação climática semelhante a essa em uma das viagens que fez aos Estados Unidos, em 1943:
“O clima é de tal maneira delicioso nesta parte de Bay Area, que num mesmo dia a gente vê e sente passar, numa espécie de paráfrase, a ronda das estações. Quando saio pela manhã, às oito, para ir buscar a correspondência ao correio, é inverno; o céu está coberto de cerração, o ar é frio. Às dez, quando me dirijo para o pavilhão das aulas, vem chegando a primavera; o sol doura o nevoeiro, que começa a esgarçar-se e erguer-se, e as primeiras nesgas de azul aparecem para além das franças dos eucaliptos. Do meio-dia às cinco da tarde estamos em pleno verão, brilha um sol de ouro, o ar é quente e seco, o céu em geral limpo, e a piscina se enche de banhistas. Depois das cinco começa o outono, a luz se faz mais madura, entra a soprar um vento fresco, e os banhistas, meio arrepiados, deixam a água. Com a noite vem o inverno, e as mesmas raparigas que ainda há pouco nadavam na água azul da piscina enfiam seus suéteres e saem em grupos por essas estradas, vão para os diversos halls onde há concertos, conferências, reuniões... E num céu onde a bruma é como um véu muito tênue,  brilham estrelinhas de gelo”.

A genialidade que habita a alma do autor transformou o limão climático em limonada poética. Verissimo nos convida a fazer brilhar sol onde insiste em chover.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 15 de janeiro de 2018)

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Voz a quem tem a dizer

“Cultura e alimentação saudável, sendo que, também, cultura é alimentação saudável”. O trocadilho repleto de significado, característica típica do autor da frase, é o mais recente mantra envergado por um dos mais expressivos batalhadores da cultura caxiense nas últimas décadas (que já somam quase meio século): o artista multifacetado conhecido como Zé do Rio. Nascido José de Oliveira Luiz em 21 de agosto de 1938 no Rio de Janeiro, o Zé vem vivenciando diariamente, desde dezembro do ano passado, a celebração dos seus 80 anos de vida, que culminam daqui a alguns meses, na data natalícia. A celebração da vida, segundo afirma, se dá desde o momento da concepção, que ele acredita ter sido, no seu caso, em alguma noite de dezembro, um idílio cujo resultado foi essa personalidade ímpar que vem fazendo a diferença na Serra Gaúcha desde que escolheu Caxias do Sul para viver, em 1975.
À beira de completar oito décadas de existência, Zé do Rio esbanja vitalidade física, mental, psíquica e cultural. Adepto de um estilo de vida saudável que inclui cuidados com a alimentação e também com a manutenção da saúde da mente e do espirito, o artista é o exemplo prático de que uma dieta temperada com cultura faz toda a diferença. “Envelhecer é uma sorte, é uma arte e é uma graça. Com saúde, é uma bênção”, decreta, sempre que reflete sobre a longevidade alcançada, marca que muitas vezes mede em minutos (quando a Câmara de Vereadores lhe outorgou o título de Cidadão Caxiense, em 2010, Zé do Rio, então aos 72 anos, contabilizava algo em torno de 37 milhões de minutos vividos). Minutos esses dedicados à causa da cultura, desempenhada por ele, de forma autodidata, talentosa e competente, em áreas como a publicidade, a fotografia, as relações públicas, o teatro, a escrita, a poesia...
Dono de concepções e ideias próprias, Zé do Rio não se cala e gosta de dizer em público, em alto e bom som, aquilo que pensa, exercendo na plenitude o direito inalienável de todo o ser humano de se expressar sem censura ou amarras. Quem questiona incomoda, em especial aos medíocres, que se autoprotegem por meio do artifício de tentar desmerecer os que lhes colocam o dedo na ferida. Zé é o Grilo Falante da cidade, a consciência que alguns preferem varrer para debaixo do tapete, ainda mais quando o assunto é cultura (“cultura é o saber fazer de cada um; cada um tem o seu cultivar”, reitera). Sorte da cidade que possui um Zé do Rio ativo entre seus cidadãos. Nós, aqui, ganhamos o presente de conviver com o quase octogenário Zé do Rio de Caxias. Deixa o Zé falar!

 (Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro" de Caxias do Sul em 8 de janeiro de 2018)