sábado, 30 de dezembro de 2017

Um pato nem sempre pato é

Primeiro de janeiro, mais uma vez. Outro ano novo se inicia, uma vez mais. Nessa data, voltamos a elencar desejos de que esses próximos 365 dias que nos aguardam venham repletos de mais coisas boas do que de ruins. Mentalizamos esse desejo para nossas próprias vidas e para as das pessoas queridas que compõem o nosso entorno, já que o nosso bem-estar as afeta positivamente e vice-versa. É assim que as coisas são e um novo ciclo se repete, no qual, provavelmente, a despeito de nossos genuínos desejos, seguiremos sendo testemunhas da sucessão de descalabros que a humanidade é capaz de protagonizar contra si mesma desde que ela existe no âmbito da (in)civilização. Fazer o quê...
Nesses tempos marcados pela intolerância e pela contínua colisão frontal entre as certezas absolutas de alguns contra as certezas também absolutas e contrárias de outros, talvez fosse interessante sonhar com a humanidade dando, enfim, um passo decisivo e concreto rumo à edificação da civilização dentro do real conceito do termo. Meu desejo de Ano-Novo, que proporcionaria anos novos e uma nova era, vai no sentido do desmantelamento da intolerância em favor da aceitação calorosa das diferenças que trazemos dentro de cada individualidade e que, no somatório, é o que nos faz tão fascinantes e singularmente humanos. Meu mundo ideal orbita um sistema planetário em que as pessoas não pensam igual, não agem igual e não se exige delas que o façam; lá, as pessoas não são classificadas por rótulos derivados de sua cor, de sua raça, de seus gostos pessoais, da nacionalidade que portam, da conta bancária que possuem, da profissão que exercem, do gênero a que pertencem, da opção sexual e afetiva pela qual optaram, das crenças que professam, do manequim que vestem. Lá, as pessoas são respeitadas, admiradas e valorizadas pelos seres únicos que cada uma delas é. Ali só não se tolera a intolerância.
Nesse recém-findo ano de 2017 aprendi uma novidade que me ajudou a compreender melhor esse conceito. Lendo uma reportagem a respeito de Carl Barks (1901 – 2000), um dos principais roteiristas norte-americanos dos gibis de Walt Disney, descobri que o Pato Donald, na verdade, é um ser humano com aparência de pato. Ou seja, ele não é um pato, apesar da aparência. Na verdade, ele age e reage tipicamente como o fazem os seres humanos, com suas raivas, vontades e surpresas. Nem sempre um pato aparente é mesmo um pato em essência. As aparências não só enganam: elas não significam absolutamente nada. Que possamos um dia aprender esse conceito tão simples. Um bom 2018 a todos!


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" de Caxias do Sul em 1 de janeiro de 2018)

sábado, 23 de dezembro de 2017

Uma trégua natalina

O episódio ficou conhecido como “Trégua de Natal” e teve lugar em diversos pontos da Europa que serviam de cenário para as sangrentas batalhas que abalavam o mundo durante a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918). O mais significativo aconteceu em dezembro de 1914, 103 anos atrás, a Grande Guerra ainda no começo, sem que ainda se tivesse dimensão das proporções a que o conflito chegaria nos três anos subsequentes. Devido à repercussão negativa que alcançou junto ao alto comando de todas as partes envolvidas no conflito, foi mantido em segredo de Estado durante décadas, até vir à tona anos mais tarde e impressionar a opinião pública.
Como se sabe, a Primeira Guerra Mundial ficou conhecida pelo fato de boa parte de suas batalhas terem sido travadas a partir de trincheiras cavadas pelas partes beligerantes, umas defronte às outras, separadas por centenas e às vezes poucas dezenas de metros. Uma guerra inerte, marcada pela extrema tensão e pelo alto grau de mortandade. Mas em dezembro de 1914, ao longo da Frente Ocidental (especialmente em territórios francês e belga), na véspera do Natal e no próprio dia 25, os soldados de ambos os lados inimigos, especialmente britânicos e alemães, estabeleceram uma espécie de trégua informal e cessaram fogo naqueles dias. Acharam estranho trocarem tiros, bombas e obuses em pleno Natal, quando lembravam nostalgicamente de suas famílias em casa, onde gostariam de estar. E foram além.
Em alguns locais, os soldados saíram de suas trincheiras e se encontraram face a face na “terra de ninguém”, o perigoso território que separava as trincheiras, para confraternizar com os inimigos. Largaram as armas, cantaram juntos canções natalinas, brindaram, trocaram presentes (cigarros, bebidas, rações), riram, confraternizaram. Houve até um caso em que ingleses e alemães disputaram uma partida amistosa de futebol, em pleno campo de batalha. Claro que os comandantes aliados e alemães não aprovaram a história e proibiram explicitamente qualquer confraternização com o inimigo nos natais subsequentes. Afinal, na visão deles, guerra é guerra, não há espaço para tréguas, nem mesmo no Natal. Pena.
Hoje o fato histórico é conhecido e celebrado como uma demonstração de que o espírito de humanidade existe latente dentro de cada um e, quando evocado com boa vontade, pode até subjugar, ao menos por alguns instantes, a ordem belicosa reinante no entorno. Hoje em dia, mais do que nunca, talvez, estejamos necessitando urgentemente de importantes períodos de trégua. Nem que seja no Natal. Um Feliz Natal a todos!

 (Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de dezembro de 2017)

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O meio-sorriso do Pozenato

Desconfie de quem anda aparentemente muito quietinho. Esse conselho é antigo, nossas mães já levavam em conta quando as crianças sumiam do raio de visão e não se escutava mais nada delas durante algum tempo. Quando isso acontece, é bom ir verificar, que elas devem estar aprontando. Aprendemos isso também com os Beatles, décadas atrás. Era maio de 1967, já havia nove meses que a maior banda de rock do planeta não lançava nada de novo depois do álbum “Revolver”, de agosto de 1966, e decidira acabar com as turnês ao vivo para se recolher em longas férias. Férias altamente produtivas, como se veria depois. Quando a imprensa questionava Paul McCartney sobre as razões da prolongada (e aparente) inércia, ele apenas respondia “wait” (“aguardem”), com um sorriso enigmático no canto da boca.

E foi assim que surgiu o explosivo, revolucionário e genial álbum “Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band”, que chacoalharia o conceito de música pop, provando que os Beatles não estavam quietinhos coisa nenhuma, mas, sim, produzindo com afinco. Jornalistas também aprendem essa lição no que se refere a alguns dos artistas que compõem o cenário cultural do entorno em que atuam, e é por isso que o prolongado (e aparente) período de inércia de um escritor da envergadura de José Clemente Pozenato, por exemplo, gera desconfianças. Estaria o autor de “O Quatrilho” e tradutor dos poemas de Petrarca fazendo nada? Há! Ledo Ivo engano! “Wait”, responde Pozenato, com seu também característico meio-sorriso de canto de boca. O que vem por aí, preparem-se, é de arrepiar. Depois de termos lido o livro, assistido à peça montada pelo Miseri Coloni e visto o filme produzido pelo diretor Fábio Barreto, agora seremos brindados com a trama de “O Quatrilho” encenada na forma de ópera. O trabalho está sendo gestado há dois anos pela Bell´Anima Produções Artísticas em parceria com a Fundação Antonio Meneghetti, do município gaúcho de Restinga Seca, e tem estreia prevista para agosto de 2018 no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Ao todo serão 16 apresentações em cinco estados brasileiros para, depois, sair em circuito internacional. As duas sopranos que, no elenco da ópera, representam as personagens Pierina e Teresa, integram a orquestra do famoso violinista holandês André Rieu. Pozenato responde pela adaptação do texto original para o formato ópera, que, segundo analisa, direciona a ênfase artística aos momentos de emoção existentes na trama. E o escritor tem mais coelhos na cartola. Parece quietinho, mas é melhor ir ver o que anda aprontando...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 18 de dezembro de 2017)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Antes que a canoa vire

Olha só, madama, vamos fazer um exercício de imaginação hoje, para ilustrarmos já de saída essa nossa reflexiva crônica de segunda. Você é uma pescadora, ok? Uma pescadora a senhora, um pescador eu. Feche os olhos e imagine... Não! Não feche os olhos, não, madama, senão não vai conseguir ler até o final. Imagine de olho aberto mesmo. Vamos lá. Você é um pescador, mora em uma casinha à beira-mar e o patrimônio mais precioso que possui é uma velha canoa de madeira que você usa todos os dias para vencer as ondas da rebentação, rumar mar adentro e soltar as redes, os anzóis e as iscas a fim de pescar os peixes que proverão o sustento de sua família.
Tudo bem até aqui? Certo, vamos adiante. Mal o sol apontou no horizonte e você já está a postos, empurrando solitariamente sua canoa ao mar e lá vai você, seus filhinhos acompanhando com o olhar a sua figura que vai se transformando em um pontinho minúsculo de encontro ao oceano. Pronto. O dia está bonito, quente, sem nuvens. Uma suave brisa matinal sopra e alcançamos a calmaria do alto-mar. A praia está distante já alguns quilômetros, você mal divisa o pico do mais alto prédio da cidade. É hora de começar a trabalhar. Só que... Opa! Que é isso? De repente, lá na proa, a água começa a entrar pelo fundo e a inundar lentamente sua embarcação. Como pode isso acontecer? Um furo? Mas como, um furo? Sim, é um furo e a água está entrando, e agora?

Lembre, você está sozinha em alto-mar em sua canoa, a quilômetros da praia, sem nenhuma outra embarcação por perto, nem viv´alma ao redor para socorrê-la. O que você faz? Vai gritar por ajuda? Vai esperar pelo socorro de alguém, da polícia, dos bombeiros, de Deus, da Fada Madrinha, do bispo, do Temer, do Lula, da Dilma, do Sérgio Moro, do Papai Noel? Não, né. Não há a quem recorrer, a não ser a você mesma. Não adianta gritar e nem empurrar seu problema para o colo de outra pessoa. Seu problema é só seu e você terá de se mexer para resolvê-lo. E o que acontece? Ora, você faz alguma coisa, sei lá o que, e se safa dessa. Afinal, não havia a quem repassar o abacaxi. Ao menos, não dessa vez. Ao invés de gritar, chorar, espernear, vituperar contra os azares da vida, você arregaça as mangas, soluciona o problema e retorna sã e salva para casa, a canoa reparada e repleta de peixes. Que é como deveria ser sempre, né madama? Solucionarmos os contratempos com mais vontade, mais suor e menos choro, porque se tem coisa de que o mar imenso não precisa é das gotas de nossas lágrimas de autocomiseração. E vamos lá que amanhã tem mais peixe à espera.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de dezembro de 2017)

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

A quem a cultura incomoda

Hanns Johst (1890 – 1978) é um artista que a população alemã não gosta muito de lembrar. Seu nome é um daqueles exemplos de personalidades que acabaram entrando para a História pela porta dos fundos devido às opções e atitudes assumidas ao longo da vida. Como sabemos, precisamos ter consciência de que responderemos eternamente pelas opções e atitudes que adotamos, mesmo que isso acarrete mergulharmos no obscuro lixo da História. Alguns o fazem deliberadamente, outros o fazem inconscientemente, mas a posteridade não abranda as consequências das nossas atitudes mesmo que pretendamos justificá-las com alegadas boas intenções. Elas (as tais das boas intenções) povoam o inferno, como atesta a sabedoria popular. E o desconhecimento da lei, da ética, dos valores, não absolve o infrator de responder pelas escolhas feitas. É prudente termos isso sempre muito claro.
Esse Hanns Johst, por exemplo, era um poeta e dramaturgo alemão que aderiu entusiasticamente desde a primeira hora à ideologia psicopata, racista, assassina, incivilizada, desumana e abominável do nazismo capitaneada por Hitler, Goering, Goebbels, Himmler e outras bestas-feras travestidas de gente. Foi um dos grandes intelectuais alemães a erguer a voz para defender, aplaudir e incentivar a queima de livros considerados “anti-germânicos” nas universidades alemãs nos meses de maio e junho de 1933, quando foram para as chamas obras de autoria de Albert Einstein, Thomas Mann, Sigmund Freud, Karl Marx, Heinrich Heine e muitos outros. Incinerar livros, desprezar a cultura em geral, configurou, na Alemanha da época, apenas um ensaio em direção à eliminação e queima de seres humanos dali a alguns anos. Cercear as artes, desprezar a importância da cultura, amarrar e emudecer artistas são atitudes sempre temerárias, em qualquer parte do mundo, em qualquer época.

Também é de autoria de Johst a peça “Schlageter”, encenada pela primeira vez por ocasião do 44º aniversário de Hitler, em 20 de abril de 1933, celebrando sua conquista do poder na Alemanha. Vem de uma das falas de um dos personagens a tristemente famosa frase “quando ouço falar em cultura, solto logo a trava de minha pistola”. Infelizmente, a ameaçadora e simbólica sentença segue sendo atual na boca, nas intenções e nas atitudes de muita gente, em várias partes do mundo. Johst foi capturado pelos Aliados no final da Segunda Guerra, condenado por suas atitudes nazistas e caiu em desgraça. Foi varrido para a lixeira da História. A porta dos fundos sempre está aberta para quem quiser cruzá-la É preciso ter cuidado.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de dezembro de 2017)

sábado, 2 de dezembro de 2017

O médico e o monstro

A Ciência, assim como qualquer outra arte ou habilidade humana, pode servir tanto ao Bem quanto ao Mal. Tudo depende do uso que se faz dela, por parte de quem a manuseia, manipula, coordena. Ela, em si, não tem lado definido, pois não passa de uma ferramenta desprovida de intenções, de objetivos, de metas. Quem as tem são os homens, que fazem dela bom ou mau uso. Em fazendo bom uso, entram para a História como heróis, recebendo aplausos e condecorações. Em optando pelo mau uso, ingressam na História na condição de vilões, merecedores de vaias e execrações. Vejamos, a seguir, dois exemplos, um de cada, a título de ilustração desta já tradicional reflexão de segunda.
Comecemos pelo bom exemplo, de cientista que utilizou seus conhecimentos, talento e esforços para auxiliar a humanidade a dar um passo além, rumo à evolução. Era engenheiro de profissão, nasceu em 1912 e morreu em 1977, mas deixou uma biografia extensa de contribuições importantes e transformadoras. Trabalhando nos Estados Unidos no final da década de 1940 e nas décadas de 1950 e 1960, forneceu uma contribuição fundamental ao desenvolvimento da tecnologia aeroespacial que resultou na conquista da Lua pelo homem. Só foi possível construir foguetes tripulados que levassem até a Lua e trouxessem de volta os astronautas com segurança devido ao empenho e à inventividade desse grande cientista e sua equipe de trabalho.
Por outro lado, um cientista também engenheiro de profissão utilizou, décadas antes, todo o seu talento inventivo para a construção de armas malignas que tinham a intenção de servir aos interesses de um dos maiores vilões da História Universal, Adolf Hitler. Esse cientista foi crucial para a criação e desenvolvimento das primeiras armas de destruição em massa e teleguiadas da História. Para criar as condições que permitissem o desenvolvimento de seus projetos, esse cientista coordenou campos de trabalho escravo secretos na Alemanha, utilizando mão-de-obra advinda de prisioneiros de guerra, em condições insalubres, desumanas e assassinas. Era comum a contagem diária de mortos devido à exaustão física, aos maus tratos, à fome e às doenças nas áreas de trabalho desse cientista do mal durante a Segunda Guerra Mundial. Ele nasceu em 1912 e morreu em 1977.

Esses dois personagens eram a mesma pessoa: Wernher Von Braun, que, finda a guerra, foi capturado e levado aos EUA para auxiliar na corrida espacial que colocou o homem na Lua em 1969. Mocinho ou bandido? Vilão ou herói? Tudo isso, nada disso, ou apenas um ser humano igual a você e eu?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 27 de novembro de 2017)