segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A mancada do Olorico

Foi na celebração dos 90 anos da dona Rieta que o Olorico perdeu para sempre a moral que cultivava junto ao coração da estimada anciã. Solteirona por opção e por rabugice, talvez mais devido ao segundo aspecto do que ao primeiro, dona Rieta não tinha filhos e era a sobrevivente solitária de uma fornada de seis irmãos que lhe povoaram o coração de sobrinhos, noras emprestadas (como designava imperiosa as esposas dos sobrinhos) e sobrinhos-netos, que lhe paparicavam e faziam as vontades.
Dona Rieta era querida pela família, pelos amigos, pelos vizinhos da rua em que vivera a vida inteira e não havia quem pensasse em se fazer ausente à festa que marcaria suas nove décadas, dali a alguns dias, em um domingo ensolarado que ela mesma tratara de encomendar via rezas diretas a São Pedro e ele que não lhe falhasse. Lúcida, ativa e xingante como sempre, dona Rieta saboreava os preparativos para o evento que seus ouvidos atentos captavam da sala ao lado enquanto o sobrinho mais velho, na casa de quem morava há décadas, organizava demandas junto à esposa, aos sussurros, na cozinha. Haveria churrasco para centenas de convidados e, vejam só, o Olorico insistia em custear sozinho metade das despesas.
Olorico era filho de uma prima de dona Rieta, falecida já há muito, e, no alto de seus 70 anos de idade, envergava a primazia de ser o afilhado mais velho da estimada anciã do clã. Havia um lugar especial para o Olorico no coração da dona Rieta e todos sabiam disso. Era como um filho para ela, e se portava como se fosse. Até o dia fatídico da festa dos 90 anos. O domingo amanheceu ensolarado mesmo, pois nem São Pedro ousaria contrariar os desígnios da Rieta. Os convidados iam chegando ao clube que sediava a festa e rumavam à poltrona de onde Rieta recebia os cumprimentos, presentes, afagos e mimos. Até que chegou o Olorico.

Aproximou-se da madrinha, abraçou-a e segredou em seu ouvido algo que a fez fechar a cara, estender o beiço e não olhar mais para ele. Houve certo climão ao longo da festa e, na segunda-feira, quiseram saber dela o que o Olorico lhe cochichara. “Ele me insultou. Disse que eu sou uma sálvia”, reclamou a madrinha, amargurada. Analfabeta que era, não reconheceu na boca do afilhado o elogio de “sábia” que ele lhe endereçava com todo o afeto e admiração. Morreu no ano seguinte sem perdoar a insolência e recusando que colocassem no galeto as folhinhas do tempero que a vida inteira apreciara. “Aquele desaforado”, resmungou até o fim, pensando no desafortunado do Olorico, a quem, desconfiam os familiares, faltou sabedoria.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 16 de outubro de 2017)

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