segunda-feira, 12 de junho de 2017

Uma autópsia da solidão

Já houve quem comparasse a solidão do goleiro à frente do gol à solidão do escritor à espera de público na sessão de autógrafos. Trata-se de uma comparação equivocada, e vou demonstrar o porquê. Verdade que jamais atuei como goleiro, mas não é preciso vivenciar a experiência na carne para conseguir imaginar as sensações de uma vivência. Para isso, existem instrumentos como sensibilidade, empatia, pesquisa, observação, estudo, leitura. Já a angústia que antecede a abertura de uma sessão de autógrafos para a qual a afluência de público é sempre uma incógnita, isso conheço bem e posso falar de cadeira.
A questão, em seu cerne, remonta ao problema da solidão, que, apesar de parecer, não é um sentimento absoluto, sentido da mesma forma por todas as pessoas. Há solidões e solidões. A solidão que uma pessoa sente frente a determinada situação pode agir (e ferir, e doer) nela diferentemente do que em mim, confrontado com situação similar, porque são nossas vivências específicas, nosso temperamento singular, nosso grau de maturidade que vão construir as defesas e os instrumentos com os quais combateremos e lidaremos com o sentimento. Você, goleiro, na frente do gol, sentirá solidão diversa da minha, também goleiro, frente ao mesmo gol. Isso é uma coisa.
A outra coisa é que os exemplos usados (o goleiro e o escritor) não possuem pontos de convergência que os habilitem a serem utilizados como ilustração plausível para o problema. O goleiro, na frente do gol, está sozinho na maior parte do tempo da partida, exceto quando o time adversário ataca. O goleiro torce para que essa solidão se prolongue pelo maior tempo possível dentro dos 90 minutos da partida. Quanto menos ameaçado seu gol, melhor para o time todo. Já o escritor à espera de público na fila de autógrafos de seu livro deseja que essa solidão inicial se dissipe logo. Para o escritor, gol significa uma longa fila de leitores com exemplares do livro na mão esperando para um abraço e uma dedicatória. E se não vier ninguém? Que angústia...

Eis aí, então, a chave da equação. O que define o tipo de solidão que sentimos é a carga de angústia que ela tem o poder de gerar. A solidão do goleiro à frente do gol não produz nele angústia. Ele prefere permanecer sozinho, com todo o seu time fustigando o gol da equipe adversária. Já a solidão do escritor na abertura da sessão de autógrafos lhe angustia deveras. O problema da solidão é a angústia, e ela nem sempre está necessariamente presente ao lado do solitário. Boa reflexão para uma crônica de segunda, não é mesmo, madama?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 12 de junho de 2017)

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