segunda-feira, 26 de junho de 2017

O bauru da libertação

Entre as 127 razões para amar Caxias do Sul, elencadas semana passada pelo jornal Pioneiro, em sintonia com o 127º aniversário da cidade, transcorrido dia 20 de junho, figurava o bauru como iguaria local com grande ibope entre o público. Sim, Caxias do Sul é reconhecida gastronomicamente, entre várias outras delícias (a sopa de agnolini, o sagu servido quente, o galeto al primo canto, o xis burguer grandalhão, o rodízio de pizzas etc), pela qualidade e pelas especificidades do bauru servido ao prato nos vários restaurantes da cidade que incluem a atração gustativa no cardápio. Eu, que aqui encravo raízes há 25 anos, também me tornei um ativo apreciador dos baurus locais, sentindo, sazonalmente, necessidades imperiosas de me conduzir a algum estabelecimento e saciar (por instantes) o desejo pelo reencontro com seus sabores, aromas e texturas.
Ah, nada como vivenciar e repetir a experiência de estar sentado à mesa do restaurante ou da lancheria e presenciar a chegada da travessa ocupada pela titânica peça de filé envolta em queijos e presunto, adornada com o fumegante molho vermelho sobre o qual ainda estira-se uma camada de molho verde, cuja receita é secreta e depende da criatividade de cada estabelecimento. Ao lado, os indispensáveis pãezinhos aquecidos e a travessa de arroz branco, trazidos para evitar o desperdício das últimas gotas dos molhos, que não podem restar no prato. É crime de lesa gastronomia e lesa gula devolver à cozinha a travessa e o prato contendo resquícios dos molhos. Só de descrever as cenas minhas papilas gustativas se excitam, a imaginação ferve e degusto garfadas imaginárias ao tecer da crônica.

Nem sempre, no entanto, estamos (nós, caxienses fissurados por baurus) municiados de tempo e, especialmente, dos fiorins necessários para saciarmos esse desejo de consumo que nos é intermitente e avassalador. Em várias ocasiões, precisamos nos contentar com uma sopinha de feijão em casa mesmo, que tem seu inegável valor, claro, mas nada se compara a um bauru quando estamos com fome de bauru. Felizmente, dia desses, transitando pela tevê a cabo, flagrei um renomado e generoso chef caxiense apresentando um programa de culinária em que ensinava os segredos e as técnicas para produzir em casa o seu próprio bauru. Com molho verde e tudo! Acompanhei atentamente todos os passos, tomei nota e, no dia seguinte, de volta das compras, lancei-me às panelas. Deu certo! Agora, sei fazer bauru. A conquista da liberdade é uma experiência multifacetada, ao sabor das motivações de cada um. Bom apetite!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 26 de junho de 2017)

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Problema que salta à vista

A senhora viu essa, madama? Dizem que o pessoal não anda enxergando direito. E não é qualquer um que diz isso. São os cientistas. E quando os cientistas dizem, é melhor a gente ver de perto, não é mesmo? Ainda mais quando se trata de cientistas americanos. Aí, sim, deve-se abrir os olhos. Pois andei lendo nessas minhas naveganças que o mundo está sofrendo uma verdadeira “epidemia de miopia”. É, madama, as pessoas estão ficando míopes iguais a mim e à senhora. Nosso grupo das toupeiras está aumentando a olhos vistos, se é que a madama me permite o trocadilho infame.
Mas, sim, o alerta é de arregalar os olhos. Dizem lá os pesquisadores da Faculdade de Optometria da Universidade de Houston (EUA) que até 2020 (logo ali) um terço da população sofrerá de miopia e, até 2050 (mais adiante), a metade dos habitantes do planeta será míope. A coisa é séria, não podemos fazer vistas grossas. Eu, que sou míope como um jabuti desde criancinha, conheço bem a sensação de ver o mundo todo borrado, como em um filme fora de foco. Minha miopia se manifestou ainda antes de erradicar-se em mim o analfabetismo, quando tinha uns quatro anos de idade, creio, e não demorou para que um par de óculos passasse a integrar meu visual permanente. Na época, éramos ainda poucos os portadores do problema, ao menos, que eu pudesse ver, mas, admito, não conseguia ver muito longe.
Um dos fatores desencadeadores da crise de miopia, conforme os cientistas, é a genética, contra a qual ainda pouco se pode fazer. O outro parece derivar de nossos hábitos sedentários. Detectou-se que pessoas que passam mais tempo dentro de casa correm risco maior de ficarem míopes do que aquelas que optam por uma vida mais ligada ao ar livre. No meu caso, tem lógica, sou o exemplo perfeito. Ficar dentro de casa tende a nos fazer forçarmos mais as vistas na leitura, na navegação em computadores, defronte à televisão e assim por diante. Já ao ar livre, a luz solar natural e intensa parece ajudar a visão a ver melhor e mais longe, conforme as pesquisas.

Quanto a isso, tudo muito bem, existem recursos como os oculistas, os óculos, as lentes, as cirurgias corretivas e a mudança de hábitos. Mas e aquela outra miopia, madama, a da alma, que faz as pessoas não enxergarem direito as mazelas do mundo ao seu redor, que faz as mesmas pessoas, quando as enxergam (as mazelas), virarem o rosto para o outro lado, agindo como quem não quer ver? Sobre essa algum cientista já pesquisou a incidência, as origens e as possibilidades de cura? Ou ainda seguirá embaçando o planeta até perder de vista?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 19 de junho de 2017)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Uma autópsia da solidão

Já houve quem comparasse a solidão do goleiro à frente do gol à solidão do escritor à espera de público na sessão de autógrafos. Trata-se de uma comparação equivocada, e vou demonstrar o porquê. Verdade que jamais atuei como goleiro, mas não é preciso vivenciar a experiência na carne para conseguir imaginar as sensações de uma vivência. Para isso, existem instrumentos como sensibilidade, empatia, pesquisa, observação, estudo, leitura. Já a angústia que antecede a abertura de uma sessão de autógrafos para a qual a afluência de público é sempre uma incógnita, isso conheço bem e posso falar de cadeira.
A questão, em seu cerne, remonta ao problema da solidão, que, apesar de parecer, não é um sentimento absoluto, sentido da mesma forma por todas as pessoas. Há solidões e solidões. A solidão que uma pessoa sente frente a determinada situação pode agir (e ferir, e doer) nela diferentemente do que em mim, confrontado com situação similar, porque são nossas vivências específicas, nosso temperamento singular, nosso grau de maturidade que vão construir as defesas e os instrumentos com os quais combateremos e lidaremos com o sentimento. Você, goleiro, na frente do gol, sentirá solidão diversa da minha, também goleiro, frente ao mesmo gol. Isso é uma coisa.
A outra coisa é que os exemplos usados (o goleiro e o escritor) não possuem pontos de convergência que os habilitem a serem utilizados como ilustração plausível para o problema. O goleiro, na frente do gol, está sozinho na maior parte do tempo da partida, exceto quando o time adversário ataca. O goleiro torce para que essa solidão se prolongue pelo maior tempo possível dentro dos 90 minutos da partida. Quanto menos ameaçado seu gol, melhor para o time todo. Já o escritor à espera de público na fila de autógrafos de seu livro deseja que essa solidão inicial se dissipe logo. Para o escritor, gol significa uma longa fila de leitores com exemplares do livro na mão esperando para um abraço e uma dedicatória. E se não vier ninguém? Que angústia...

Eis aí, então, a chave da equação. O que define o tipo de solidão que sentimos é a carga de angústia que ela tem o poder de gerar. A solidão do goleiro à frente do gol não produz nele angústia. Ele prefere permanecer sozinho, com todo o seu time fustigando o gol da equipe adversária. Já a solidão do escritor na abertura da sessão de autógrafos lhe angustia deveras. O problema da solidão é a angústia, e ela nem sempre está necessariamente presente ao lado do solitário. Boa reflexão para uma crônica de segunda, não é mesmo, madama?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 12 de junho de 2017)

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Negociamos com quem?

Vender a alma ao diabo, fazer o pacto com as forças obscuras das profundezas abissais em busca de poder, glória, dinheiro e outras benesses é um símbolo e um recurso alegórico amplamente explorado pela literatura a fim de aprofundar o olhar sobre as nuances da alma humana. Facilmente seduzidos por promessas de artimanhas que lhes proporcionem os maiores ganhos frente aos menores esforços, os seres humanos, em essência e no geral, cortejam a ideia de negociar o que lhes seria o bem imaterial mais precioso (simbolizado pela alma) em troca de benefícios egoístas, imediatos e autocentrados que lhes posicionem em ponto superior e favorável em relação ao próximo, estabelecendo com ele distâncias artificialmente criadas, deixando o próximo cada vez mais longe. Esse é o termo principal do pacto. O outro, se dá ao final, representado pelo resgate da alma do “beneficiado”, quando, então, ele sofrerá as drásticas e irreversíveis consequências de sua escolha e não haverá mais a quem recorrer. Mas aí o caldo já terá entornado.
A literatura aborda o tema do pacto sinistro há séculos, com ótimos autores debatendo a questão por meio de personagens e tramas inesquecíveis. “Fausto”, de Goethe (1749 – 1832), é o primeiro que vem à lembrança quando se trata do assunto, baseado na peça teatral criada anteriormente pelo dramaturgo Christopher Marlowe (1564- 1593), “A Trágica História do Dr. Fausto”. Thomas Mann retoma o tema já no século 20 com seu romance “Doutor Fausto” e a questão do pacto com um ser mefistofélico em busca da conquista de projetos pessoais sempre está no centro das tramas. O menos conhecido Edelbert Von Chamisso (1781 – 1838) faz o mesmo em seu “A História Maravilhosa de Peter Schlemihl.” 

No Brasil, Guimarães Rosa (1908 - 1967) também insinua a questão como pano de fundo possível para as motivações de seu jagunço Riobaldo, protagonista de “Grande Sertão: Veredas”. Desde o início do romance, Riobaldo mostra-se preocupado com o problema da existência ou não do demônio e a possibilidade (ou não) de firmar um pacto com ele. Já quase no final da caudalosa obra, o personagem chega a uma conclusão inequívoca, expressa por suas próprias palavras: “Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, e sem nenhum comprador”. Negociamos (ou nos desvencilhamos) nosso bem mais precioso (a alma, que evoca nossa ética, nossa moral, nossa humanidade) mesmo sem que haja nenhum comprador. O mal reside é nisso.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 5 de junho de 2017)