segunda-feira, 24 de abril de 2017

Um dilema está à mesa

A vida, às vezes, nos coloca diante de dilemas profundos que se camuflam sob um aparente véu de trivialidade. Esses pequenos dramas do cotidiano, quando analisados um pouco mais a fundo, sentados no sofá à noite ou durante a escovação das costas sob o jorro do chuveiro, podem nos oferecer vislumbres valiosos a respeito de aspectos constitutivos de nossas próprias essências, o que se torna uma ferramenta muito útil em ocasiões diversas. Conhecer-se a si mesmo é um conselho que vem sendo ofertado à humanidade há milênios e sempre é bom revalidar sua importância, mesmo que seja em crônicas de segunda como esta que palmilhamos agora juntos, brioso leitor e persistente leitora.
Dia desses de feriado, por exemplo, pulei da cama cedo (porque feriados foram feitos para serem aproveitados hora a hora e dormindo não as vejo passar) e logo atinei à ideia de retirar do congelador uma bandeja de filés de primeira, a serem devidamente trabalhados mais tarde, já descongelados, na hora do almoço. Um almoço de feriado requer atenções especiais, porque, afinal, é feriado e feriados são autojustificáveis para quase tudo. Feito isso, enquanto esquentava a água para o café da manhã, dei uma verificada na geladeira e na despensa, onde constatei a presença tranquilizadora de ingredientes suficientes para fazer daqueles filés um verdadeiro manjar sem ter de ir ao supermercado.
Havia cebola em profusão, havia temperos, havia arroz para o acompanhamento, havia creme de leite para a eventualidade de querer produzir um molho, havia óleo de girassol para a fritura, havia palmitos, havia extrato de tomate, havia mostarda, havia alcaparras, havia pimenta em grãos, havia champinhons, a coisa estava realmente sortida e bem fornida. Foi daí que estabeleceu-se o drama. Frente a tantas alternativas, o que fazer com os meus filés? Um estrogonofe era a pedida que saltava alegre na ponta da fila dos desejos gastronômicos; mas logo surgia a ideia de um suculento, simples e certeiro bife acebolado; ou, quem sabe, um filé ao molho de pimentão; ou, ainda, picar tudo em cubos e preparar um saboroso goulash... ou... ou... ai!

Simplesmente não conseguia decidir. A disponibilidade de ingredientes levava ao infinito o espectro das possibilidades e meus filés jaziam ali, perplexos, subjugados à inércia de minha indecisão. Era preciso obter uma lição daquela situação, e ela não demorou a vir. Guardei os filés ainda congelados de volta no freezer e saí para almoçar em uma churrascaria. Aprendizado: feriado não é dia para tomar decisões de envergadura vital.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de abril de 2017)

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Tire o chapéu quando à mesa

Convido os leitores a construírem na mente, comigo, uma situação hipotética. Digamos que você tem um filhinho de cerca de um ano e meio de idade e, por alguma razão qualquer, fica claro que não irá vê-lo nunca mais na vida. É um momento doloroso de despedida, pungente, você sabe disso, a atmosfera está impregnada de emoção. A criança está no colo da mãe (ou do pai), que verte lágrimas, e você percebe que terá de antecipar ao filho os conselhos que guardaria para ir presenteando a ele ao longo de seu processo de crescimento, mesmo que, naquele momento, ele não compreenda o sentido das palavras. Mesmo assim, frente ao Universo, você precisa falar. O que você diria? Qual o legado você pretende transmitir para as gerações que lhe sucedem? Quais os conceitos e valores o definem e você imagina serem dignos de repasse?
Uma cena assim pontua um dos capítulos da temporada final de uma minissérie televisiva norte-americana que venho acompanhando. Trata-se de “Hell on Wheels” (“Inferno Sobre Rodas”), cujo pano de fundo são as relações dos personagens que povoam o acampamento móvel que acompanha a construção da primeira ferrovia transcontinental a ligar os Estados Unidos de ponta a ponta, na década de 1860. O personagem principal é Cullen Bohannon (vivido pelo ator Anson Mount), um ex-soldado confederado que lutou na recém-terminada Guerra da Secessão e acaba se transformando no manda-chuva do canteiro de obras da ferrovia. A cena acontece no capítulo 9 da quinta (e última) temporada da série.
Bohannon se despede do filho que deixa nos braços da mãe e, entre lágrimas, elenca conselhos: “Espero que se esforce a vida toda para ser humilde. Respeite as mulheres. Tire o chapéu à mesa. Nunca comece uma briga nem fuja de um ou de outro. Perdoe. Esqueça. Fale a verdade. Respeite sua mãe e seu pai”. Poucas palavras, sábias, profundas, banhadas na sabedoria adquirida pelo personagem ao longo do embate duro e cru frente às pedras e tropeços encontrados no caminho da vida. “Tire o chapéu à mesa” confere credibilidade ao discurso do personagem, imerso nos costumes da época retratada no seriado. Aos dias de hoje, soa como metáfora para o cultivo da gentileza e da consideração para com os outros ao redor (conselho mais que vital nesses modernos dias de individualismo). Os demais pontos falam por si, são universais e atemporais e concordo com todos.

E você? Que outros conselhos reuniria para repassar aos que nos sucedem na representação, sobre o palco da vida, daquilo que de melhor podemos oferecer ao mundo enquanto seres civilizados?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, em 17 de abril de 2017)

segunda-feira, 10 de abril de 2017

A verdade é um sem-teto

A verdade, onde mora a verdade? Analisando os bastidores da História, tanto a antiga quanto a recente que está sendo tecida diante de nossos olhos e narizes; tanto a de nosso povo quanto a das outras nações, bem como as biografias dos protagonistas e o que elas ocultam ou sugerem nas entrelinhas, chega-se à conclusão de que a verdade é um elemento meramente decorativo na composição dos fatos que entram para a historiografia oficial da humanidade. Onde mora a verdade? Ora, em lugar algum. Ela é, a bem da verdade (ops), um sem-teto, um ser vagante que não encontra abrigo em página alguma na História da raça humana.
A verdade bate de porta em porta, é recebida com sorrisos na condição de convidada de honra nos salões mais nobres da História, acomoda-se em assento especial a ela reservado na mesa principal e posa para as fotos que ilustrarão as páginas oficiais do jantar. Porém, é mantida estrategicamente à distância dos porões da mansão onde, a portas fechadas, são tratados os verdadeiros acordos, onde as intrigas ganham forma, onde as intenções são postas à mesa, onde a barganha se concretiza, onde as máscaras são despidas. Ali, a verdade não entra. A música embala o baile no salão nobre onde a verdade é ludibriada pelos sorrisos e flashes que irão compor a História oficial. O alegre bailado sacode as tábuas do teto dos porões esfumaçados que ficarão à margem da narrativa. Porém, é ali que a verdadeira História ganha forma, só que ninguém fica sabendo. Alguns indícios às vezes sobem as escadas e tentam vir à tona, porém, logo são varridos para o meio-fio e classificados como teorias da conspiração, frutos de mentes ingênuas e deturpadas. Terminada a festa, a verdade volta a ser arremessada para a sarjeta.
E assim, vamos acreditando no que nos contam sobre as mortes de Marilyn Monroe e de John Kennedy, sobre o suicídio de Getúlio Vargas, sobre os reais desdobramentos da Segunda Guerra Mundial, sobre o assassinato de John Lennon, sobre os motivos dos processos de impeachment de presidentes brasileiros, sobre as planilhas de custo de certos produtos, sobre o atentado ao World Trade Center, sobre a inocência de revelarmos todos os nossos dados pessoais permanentemente conectados à internet, sobre as intenções de determinados políticos e assim por diante.

A humanidade está em pé de guerra contra a verdade desde que o mundo é mundo. Nem mesmo os ditados populares escapam dessa equação. Por exemplo: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Nem um nem outro. Na verdade, quem veio primeiro foi o galo, mas isso nunca nos é contado.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de abril de 2017)

segunda-feira, 3 de abril de 2017

O Pretinho da Viajantes

Houve um tempo, lá na Rua dos Viajantes, onde eu morava na infância e adolescência, em Ijuí, em que cultivávamos a estimação de dois gatos e de dois cachorros, a saber: Pretinho e Fips (os gatos) e Balú e UFO (os cachorros). Vou me ater à questão relativa aos gatos, nestas mal-digitadas linhas de segunda (de segunda-feira, né, leitor atilado e leitora benevolente), deixando a dos cachorros para uma próxima, caso seja de manifesto interesse. Se não for, farei da mesma forma, sabe, né, madama.
Os gatos, então. Pretinho era o mais velho da dupla e compartilhava com o novato Fips o privilégio concedido na casa aos da espécie felina, que era o de transitarem livremente entre o ambiente doméstico e a rua, o pátio, as redondezas. Eram livres. UFO e Balú, os cães, obedeciam às regras do regime semi-aberto destinado aos caninos da casa: vida restrita ao pátio, sem coleiras, dentro dos limites das cercas mas vetados às dependências da residência. Detentora de claros privilégios, a dupla de gatos perambulava soberba perante a mal disfarçada inveja dos dois cachorros, porém, a convivência era pacífica, amistosa, desprovida de incidentes. Praticava-se irracionalmente a tolerância com as diferenças, a aceitação mútua, o convívio tranquilo.
Pretinho, o gato mais velho, era escuro como um carvão e esperto e serelepe como um saci de quatro patas (e cauda). Brincava de esconde-esconde comigo e minha irmã pelos corredores da casa, por onde saltava detrás das portas e cortinas para nos dar sustos e sair em disparada porta afora, dando risada, esperando que corrêssemos atrás dele. Subia nas árvores do pátio, especialmente em uma frondosa timbaúva, e de lá de cima chamava o novato Fips para com ele aprender escaladas. Fips ficava ao pé das árvores, admirando seu mentor, reunindo coragem para avançar além do tronco de um magrinho jacarandá. Não tinha vocação para aventuras radicais como Pretinho, e preferia passar as tardes me fazendo companhia no quarto enquanto eu produzia, com lápis de cor, minhas histórias em quadrinhos. Era um gato literato. Cada felino com suas nuances, bem sabemos.

Um dia, Pretinho morreu, sabe-se lá exatamente de quê. Uma vizinha telefonou avisando que o encontrara morto em seu pátio e fui lá com uma caixa de papelão resgatar o corpinho duro do estimado felino. Peguei pá e enxada e fui enterrá-lo num canto remoto do quintal de casa, sob o olhar atento de Fips, deitado ao lado, na terra. Só ele e eu estivemos presentes às cerimônias fúnebres de Pretinho. O primeiro amigo que se enterra, a gente nunca esquece.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de abril de 2017)