quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A lógica do lobo

Hoje a crônica vai por conta da Madama. Não o texto em si - até porque daí eu teria de partilhar parte de meus proventos decorrentes da digitação diária destas mal-tecladas linhas e minha síndrome de Tio Patinhas não o permitiria -, mas, sim, a essência do exposto, oriunda de uma pertinente preocupação que a vem assombrando nesses assombrosos dias e que ela teve a delicadeza de compartilhar com este escriba. Delicadeza aliada à esperteza, pois que ela, no fundo, imaginava (e esperava) que eu acabaria transformando o insumo em crônica e dando-lhe o crédito, já que isso sobre mim ela sabe: mundano cronista, sim; larápio de autorias alheias, jamais! Apesar de não ser banqueiro, sempre dou crédito a quem o merece.
Madama me confessou andar apoquentada (Madama é dessas raras criaturas que ainda se apoquentam com as mazelas do mundo imediato ao seu redor e também à distância, do Oiapoque ao Chuí; do Rio das Antas ao Deserto de Gobi), apoquentada e incomodada (que ela também se incomoda) com essa epidemia psíquica que anda contagiando as gentes de hoje, cegando-as em meio a uma neblina espessa de preconceitos e ideias preconcebidas impossíveis de serem removidas (as imagens literárias aqui usadas são de Madama, uma exímia escultora de figuras de linguagem). “As pessoas botam uma coisa na cabeça e não há Cristo que as tire; não há argumento, lógica ou razão capaz de remover o tijolo mental que elas criam”, exclama Madama, olhos arregalados por trás do pince-nez (Madama, elegante, equilibra há décadas um delicado pince-nez na ponta do discreto nariz).

Verdade, Madama. Suas reflexões fazem o mundano cronista evocar uma das mais famosas fábulas de Esopo, o filósofo-escravo grego do século VI antes de Cristo: “O Lobo e o Cordeiro”. Era assim: O lobo viu o cordeiro bebendo água num riacho e decidiu devorá-lo. Como precisava de uma boa razão para isso, acusou-o de sujar a água que ele mesmo bebia, apesar de o lobo estar bebendo na parte superior do riacho. “Como posso sujar sua água, se ela vem daí de cima onde você está?”, argumentou o cordeiro. Desarmado no âmbito da lógica, o lobo retrucou: “Sim, mas ano passado insultaste meu pai”. E o cordeiro: “Eu nem era nascido”. Irritado e determinado, o lobo vociferou: “Se não foi você foi seu pai, ou seu irmão, ou seu tio. Defenda-se como quiser, pois não vou poupá-lo”, e devorou o cordeiro. Nem precisava, né Madama, mas Esopo insiste em grafar a moral da história: “Quando alguém está disposto a nos prejudicar, de nada adianta nos defendermos”. A alcateia assombra Madama.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de agosto de 2016)

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