quinta-feira, 21 de julho de 2016

Sorriam, pés, lá vai a foto!

Sempre que navego por perfis alheios nas redes sociais, eu me lembro de Horácio. Sabe o Horácio, madama? Hein? A senhora diz aquele bichinho verde e cabeçudo criado por Mauricio de Sousa, nos gibis da Turma da Mônica? O bichinho é um dinossauro, madama, mas não, não é esse o Horácio a que me refiro. Falo do Horácio amigo de Hamlet, personagens criados por William Shakespeare na peça teatral afamada, da qual algumas pérolas singram firmes os mares do tempo e permanecem significativas até hoje, como “ser ou não ser: eis a questão”, “há algo de podre no reino da Dinamarca” e outras.
Entre as outras, salta-me à mente, sempre que navego por perfis alheios nas redes sociais, uma frase que Hamlet dirige a Horácio na Cena 5 do primeiro ato da peça: “há mais coisas entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia, Horácio!”. Por meio da fala inspirada, Hamlet compartilha com o amigo a sua estupefação frente às coisas do mundo que escapam à nossa mais afinada capacidade de tentativa de compreensão. Não tenho, a exemplo de Hamlet, nenhum amigo chamado Horácio a quem eu possa invocar nesses momentos de estupefação, portanto, evoco o Horácio de papel mesmo sempre que minha vã filosofia se vê pequena diante das coisas que vejo nas redes sociais.
Selfies de pés, por exemplo. Depois das selfies de si mesmos (e viva o pleonasmo!), dos rostos sorridentes se sobrepondo a cartões-postais famosos como a Torre Eiffel, Machu Picchu, o Monumento ao Imigrante etc, o terceiro posto no ranking das fotos mais repetidas nas redes sociais é ocupado pelas selfies dos próprios pés dos internautas. As pessoas tiram férias, assentam-se à beira-mar ou à borda da piscina e pimba! Tascam uma foto de seus pés observando o mar, refletindo sobre suas vidas pedais deitados em uma esteira, olhando o movimento, essas coisas que pés fazem quando não estão pisando. São as “pesfies”. Antes delas, grassam nas redes sociais as selfies de espelho, resultantes do impulso que as pessoas cultivam de fotografar a si mesmas e nas quais o que realmente se sobressai é o aparelho celular ofuscando o rosto do (da) vivente, dando a impressão de existirem celulares andantes providos de corpo e pernas (móveis, de fato). São as “celularfies”.

Selfies, celularfies e pesfies infestam os perfis das redes sociais, Horácio, atordoando nossas filosofias, por mais vãs que elas sejam. “Ó, tempos! Ó costumes”, já dizia Cícero em Roma, tão aparvalhado quanto Hamlet, Horácio e eu, frente ao que não entendia ao seu redor. Ao menos, sinto-me bem acompanhado em minha estultícia.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de julho de 2016)

Nenhum comentário: