quarta-feira, 20 de julho de 2016

Páginas com poder de vício


Compartilho com grande parte da humanidade essa mania – que poderia ser esquisita, mas não o é devido à incidência – de passar a vida escutando infinitas vezes aquelas músicas de que mais gosto. Não me canso de ouvir certas canções dos Beatles, dos Rolling Stones e de outros tão cotados quanto eles no rol das minhas preferências musicais e levo os CDs para o carro a fim de que essas já decoradas e batidas melodias me acompanhem em viagens, ou aumento o som do rádio quando deparo com uma delas ofertada pela generosidade do programador musical da emissora, ou levanto da cama pela manhã deliciosamente assombrado por outra delas e vou fazê-la tocar de imediato no aparelho de som da sala. Nisso, assemelho-me ao geral das gentes e sinto-me humano.

Os estranhamentos aparecem quando percebo que estou a exercitar o mesmo pendor do vício da repetição exaustiva em outra área das artes: a literatura. Cada vez mais, gosto de revisitar periodicamente textos que considero saborosos, ou geniais, ou pungentes, ou líricos, ou marcantes, ou apenas divertidos e deliciosos. Na conta desses últimos (os divertidos e deliciosos), enquadro já faz tempo uma crônica de Rubem Braga (1913 – 1990), escrita em meados da década de 1950, intitulada “Meu ideal seria escrever”. Nesse texto, em que o autor esbanja seus sobrenaturais poderes de criação poética e abordagem lírica do mundo, ele confessa ao leitor o desejo íntimo de um dia conseguir escrever uma história que fosse muito engraçada e levasse alegria aos corações das pessoas que a lessem, iluminando assim, ao longo dos fugazes instantes da leitura, o mundo das gentes ao menos um pouquinho.

“Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse – ‘ai meu Deus, que história mais engraçada!’”. Leio e releio essa pérola de texto há anos e sempre renovo meu prazer de saborear as linhas do mestre dos cronistas brasileiros. Mas esses dias, no sofá da sala de casa, fui tomado por um incontrolável acesso de riso ao ler uma crônica de Fernando Sabino (1923- 2004), intitulada “As coisinhas do poeta”. Ri à larga com as desventuras do ébrio personagem no velório de um primo (felizmente, me encontrava na discrição da intimidade de meu lar e não em público) e imaginei que aquela, sim, poderia ter sido a tal da “crônica muito engraçada” que o Braga gostaria de ter escrito. Sabino o fez, na década de 1960. E eu ganho mais um texto para alimentar a sequência desse meu vício.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de julho de 2016)

Nenhum comentário: