quinta-feira, 2 de junho de 2016

Um copo de boa literatura

“Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ – não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos indo sempre para casa’”.
O trecho foi extraído das páginas iniciais de um livro chamado “Lavoura Arcaica”, de autoria do escritor paulista Raduan Nassar. A passagem não foi escolhida ao acaso. É uma das muitas sublinhadas por mim em meu exemplar. Não fosse essa, poderia ser qualquer outra, que o propósito de abrir esta crônica oferecendo ao leitor uma degustação da qualidade literária do autor seria contemplado. Poderia mesmo abrir o livro ao acaso e, em qualquer das outras páginas, deparar com passagens do mesmo quilate. Poderia, ainda, fazer o mesmo com qualquer dos outros livros de sua autoria: “Menina a Caminho” e “Um Copo de Cólera”, já que uma literatura de alto nível transborda em suas linhas. Essa pequena tríade de reluzentes pérolas literárias compõe toda a obra de Raduan Nassar, que não publica mais desde 1997.
Mesmo tendo publicado tão pouco, esse recluso paulista de 80 anos se configura em um dos melhores escritores brasileiros vivos, uma vez que sua obra marcou o cenário literário nacional desde o momento em que foram lançados, na década de 1970, seus dois primeiros títulos, as novelas “Um Copo de Cólera” e “Lavoura Arcaica”. Os contos de “Menina a Caminho” vieram à luz em 1997, quando tive o prazer de conhecer sua vigorosa obra. E, desde então, o autor se recolheu, deixando para nós, leitores, a tarefa (em nada ingrata) de revisitar indefinidamente as poucas páginas de sua autoria.

Esta semana, o nome de Raduan Nassar voltou à cena: na segunda-feira, foi anunciado como o vencedor do Prêmio Camões de Literatura deste ano, um dos maiores reconhecimentos para autores de língua portuguesa, sendo concedido pelos governos de Brasil e Portugal. A organização desta 28ª edição do Prêmio Camões (que já laureou 12 autores brasileiros, contando Nassar) anunciou o vencedor equiparando seu talento a nomes consagrados da literatura brasileira como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Reconhecimento mais do que merecido. Vai que agora ele se anime e escreva mais um pouquinho para a gente...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de junho de 2016)

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