sexta-feira, 6 de maio de 2016

Sede saciada no quintal

Discorríamos, então, sobre a desnecessidade de ir procurar ao longe os talentos que existem aqui do nosso lado, atuando em nossos quintais, ao alcance de nossas mãos e ao ouvido de nossos elogios, caso sejamos suficientemente generosos para elogiá-los e minimamente habilitados a detectá-los. Nós, habitantes da Serra Gaúcha, temos o privilégio de contar, entre os cidadãos nascidos ou radicados por essas bandas, com um número significativo de talentos de envergadura universal atuando entre nós, sem que precisemos sair à procura deles por plagas distantes. Isso, em todas as áreas da atividade humana.
Atenho-me a lançar luz, a partir desse enfoque, aos nossos escritores, já que a literatura é área na qual transito com certa desenvoltura por ganhar a vida enfileirando palavras de sol a sol, mesmo quando nublado. Nossa região é pródiga, por exemplo, no permitir e estimular o florescimento de grandes, geniais e talentosos criadores de metáforas literárias. E isso não é pouco, em se tratando de buscar na literatura a expressão do gênio, o sabor do novo, a simplicidade do Belo que desvela o talento único do criador. Porque tecer novas, boas e surpreendentes metáforas é uma arte delicada e sutil, difícil de ser esgrimida e que elege poucos representantes qualificados. Mas nós temos os nossos representantes e se faz necessário manter viva a memória deles.
Refiro-me em especial a dois escritores serranos já falecidos, cujo poder de criação poética e metafórica os assenta junto aos grandes da literatura universal: Ítalo Balen (1917 – 1981) e Flávio Luís Ferrarini (1961 - 2015). O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986) cultivava, entre os temas de sua predileção, o estudo profundo das metáforas, a ponto de se perguntar: “por que diabos os poetas, pelo mundo afora, e pelos tempos afora, haveriam de usar as mesmas metáforas surradas quando há tantas combinações possíveis?”. Ora, elementar, meu caro Borges, respondo eu: porque esses poetas de mundo afora não foram tocados pelo mesmo talento que movia as mãos criativas de um Balen e de um Ferrarini. Vai uma degustação aí? Então:

“Antônia Muco tece cortinas com fios de choro... as longas noites não umedecem dedos para virar as páginas mortas de sono” (Ferrarini). “Não, meu amigo, meu peito é basalto/. Apenas, de quando em vez,/ brota da pedra, milagrosamente,/ um fio d´água, que não é néctar,/ mas aplaca, porque é puro,/ a angústia dos que são simples/ e têm sede” (Balen). Ah, que bom poder saciar essa sede tão pertinho de casa...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de maio de 2016)

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