segunda-feira, 2 de maio de 2016

Pois é, de novo o estrogonofe

Todo cronista que se preze está sujeito à ação de um fenômeno que poderia ser classificado como o “eterno retorno temático”. Ou seja, trocando em miúdos, trata-se da recorrência cíclica e sazonal, por parte do cronista, a assuntos anteriormente já abordados, uma vez que, convenhamos, né, estimado leitor e calorosa leitora, haja imaginação para conseguir abordar um tema novo a cada dia, apesar de, no Brasil, não ser difícil encontrar inspiração que alimente a surrealidade cronical a partir da observação da realidade surreal que nos cerca, é verdade, é verdade, reconheço e admito, basta sintonizar os noticiosos, mas, enfim, deixemos disto e vamos em frente.
Sendo eu um cronista da classe mundana (eu estava a ponto de utilizar o adjetivo “categoria”, mas, talvez, seja justamente esse tipo de atributo que falte aos cronistas dessa natureza, então, deixei por “classe” mesmo, que causa menos impressão e inibe celeumas), estou plenamente afeito ao efeito (trocadilho, viram?) dos assuntos que voltam a visitar as linhas que tão mal traço e não tenho como evitar, sob pena de, em o fazendo, ficar sem crônica. E por mais mundano que seja o cronista, ele não pode se dar ao luxo de ficar sem crônica, pois deixaria de ser cronista e teria de se dedicar ao mundanismo por si só, o que, convenhamos de novo, não tem o menor sentido sem que sobre ele se cronique. Croniquemos, então, sobre assunto já abordado, e o de hoje, tolerante leitora, paciencioso leitor, é o estrogonofe. De novo.
Mas sabe o que é? É que não existe estrogonofe igual ao estrogonofe de minha mãe. O estrogonofe dela é único, como, aliás, suponho ser também único o estrogonofe da mãe de qualquer cidadão que possua progenitora habilitada a cozinhar o delicioso manjar. Venho aqui recorrer ao tema para perenizar meu espanto frente ao fato de ser impossível reproduzir às panelas o sabor, a textura, a consistência e o perfume do estrogonofe de minha mãe. Tenho em casa a receita que ela utiliza, copiada para mim pelo próprio punho dela, mas não adianta: mesmo seguindo a risca cada passo, o meu jamais fica igual ao dela.

E por que isso, caro leitor, queridíssima leitora? Onde reside o mistério? Ora, simples. O mistério reside no fato de que há segredos que não podem ser desvelados por meio de uma receita. Há atos, fatos e jeitos de ser que decorrem da unicidade de cada um, impossíveis de serem imitados. Daí que um ser humano não pode ser reduzido a uma receita, e eis aí a crônica. Recorrente, sim, mas, ao menos, fugindo à receita.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de maio de 2016)

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