quarta-feira, 4 de maio de 2016

A sina que vem do berço

Estou convencido de que existem alguns traços de nossas personalidades que já nascem instalados na gente, quer queiramos, quer não. Viemos ao mundo já imbuídos de alguns programas instalados em nossas psiquês, independentemente dos ensinamentos que viermos a receber de nossos pais, do acesso que viermos a ter à educação e à cultura, de nossa condição social e econômica, dos esforços de nossos mestres, das ralhadas de nossas avós, das experiências que vivenciarmos, do desencanto com o Papai Noel. Esses downloads vêm à luz junto conosco e vão se manifestar ao longo de nossas existências, moldando e determinando aspectos de nossas personalidades.
Tomemos como exemplo eu mesmo (sim, e quem mais haveria de ser, né, madama?). Muitas das tendências e das antipatias que eu manifesto hoje, na idade madura (deixando claro minha concordância de que maturidade é um conceito relativo), já se faziam notar nos primórdios de minha aventura sobre este vale de lágrimas, na minha mais tenra infância, quando ainda usava fraldas (não, madama, não as geriátricas, mas as pueris mesmo), era, analfabeto, engatinhante e, naturalmente, fofo, muito fofo. Sim, senhora, já fui fofo. Não me obrigue a prová-lo, aqui não é o lugar e nem o momento para isso. Deixemos disso e sigamos no tema da crônica. Foco, madama, foco. A senhora também deve tê-lo.
Dizia eu que daria exemplos pessoais para ilustrar e embasar minha tese de que já viemos ao mundo aparelhados com algumas características de nossas personalidades. Ah, pois. Então: final de semana caiu-me no colo um livrinho intitulado “Diário do Bebê”, que minha mãe se dedicou a preencher, cinco décadas atrás, com alguns detalhes a respeito desta minha pessoa em meu primeiro ano de vida. E está lá, com todas as letras maternas: “Dia tal: foi pela primeira vez ao barbeiro: chorou, mas conseguiram cortar seu cabelo sem maiores complicações”. Interessante, pois que, até hoje, tenho um inexplicável horror a ir cortar o cabelo. Na página destinada a anotar minhas primeiras distrações, consta que eu ficava fascinado olhando o interior da geladeira. Ficava e ainda fico. Sou fascinado por geladeiras. Pelas coisas que elas guardam, na verdade. Também diz o livro que eu gostava de brincar com tampas de panelas. Sigo gostando, especialmente de panelas e do que se pode fazer com elas.

Ou seja: já havia muito de mim em mim mesmo desde que nasci. Não estou reinventando nada. Até voltei a ficar fofo. Sim, eu sei, preciso praticar exercícios. Mas fofo é fofo, né, madama, pega leve.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de abril de 2016)

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