sexta-feira, 29 de abril de 2016

Pé na pantufa e mãos à luva

Este ano o frio não chegou, ele jogou-se de cabeça. Veio pra cima com tudo, como se fosse um lutador de MMA. Pulou para o ringue, partiu contra o oponente (nós, meros mortais) e o levou à lona com o primeiro golpe. Nocauteou a torto e a direito, sem dar tempo de sequer olhar em volta. Como chegou atrasado (quem dentre nós não andou reclamando que já era final de abril e o calor continuava, hein?), parece que arrebentou a porta determinado a tirar o atrasado em questão de minutos, e foi o que fez. Jogou os termômetros para baixo de zero em certas localidades, ensaiou neve já nas primeiras 48 horas, congelou orelhas e pontas de narizes e deu o tom para o início do coral das tosses. Eita!
Aqui em casa está o escambau. Até o final de semana, passeávamos tranquilos pelo terraço de chinelo-de-dedo, camisetinha de manga curta, cerveja gelando no refrigerador, palitos de geladinho no freezer para quando o afilhado vem visitar, janelas abertas para deixar correr um ventinho, essas coisas. Tudo isso, que foi ontem, agora parece já pertencer a um passado distante e saudoso. Ah, que saudades do verão! De uma hora para a outra, os cobertores precisam ser reencontrados em seus esconderijos secretos, os casacões e capotões retornam aos cabides, tira-se o pó de cima do aquecedor elétrico para que o banheiro seja climatizado durante o banho (até quando teremos de nos banhar completamente nus?), as pantufas seguem desaparecidas, o estoque de café precisa ser incrementado, os dedos endurecidos dificultam a escrita sobre o teclado.
Olho pela janela do escritório e identifico, ao longe, a fumacinha que escapa pela chaminé de uma casa, revelando a existência ali de um fogão a lenha em plena atividade, aconchegando uma família. Deve haver uma chaleira de água quente sibilando em cima da chapa, uma panela de feijão cozinhando longa e mansamente para a hora do almoço, a lenha alimentando constantemente o fogo, sob a responsabilidade de algum dos habitantes da casa. Mais ao longe, outra fumacinha sobe serpenteante rumo ao céu, agora azul. Azul de frio.

Vivemos em clima temperado e o retorno do frio nesta época do ano é efeméride cíclica, esperada, certeira. Não deveria nos espantar tanto, porém, gostamos de cultivar esse nosso potencial de nos surpreendermos com a mudança de clima, pois que, assim, mantemos viva em nós a chama do novo. É uma forma de acumularmos combustível para seguir em frente em todos os aspectos de nossas vidas. Vamos ao frio, então.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de abril de 2016)

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Ser para ter e ter para ser

Que o mundo ao nosso redor anda a cada dia que passa mais e mais materialista, isso é uma verdade indiscutível. O ter se sobrepõe ao ser e as pessoas passam a ser seres que só agem em função desse ter. Deixamos aos poucos de sermos seres para sermos teres. Ser para ter é o lema da vida nas sociedades ocidentais modernas. E, na via inversa, é o ter que determina o quanto se pode ser.
E não se trata só de ter bens materiais, físicos, palpáveis, compráveis e vendíveis. Não. A fórmula do ter para ser é mais abrangente e implica também obter poder para comandar, para ostentar, para oprimir, para humilhar, para sobrepujar, para burlar as leis e as regras incolumemente, para dar carteiraço, para poder aplicar o chavão “você sabe com quem está falando”? A resposta que o sujeito espera quando profere esse mantra selvagem é: “estou falando com quem pode”. Porque quem pode, pode, né. Quem não pode, se sacode. Vivemos a era do ter para ser e do poder fazer com que se sacudam ao nosso redor. “Tenho, logo, existo”. “Tenho”, aqui, significa ter mais coisas do que os outros (e mais caras, mais lindas), ter mais possibilidades do que os outros, ter mais poderes, ter mais admiração (a admiração é um sentimento democrático e não-seletivo, basta ver que assassinos psicopatas também conseguem ser admirados por seus pares), ter mais chance de impor suas vontades e seus desejos sobre os demais, sobre a sociedade toda, se for possível.
Até mesmo o saber, a busca legítima por conhecimento e autodesenvolvimento, passa a ser perseguido como meta para exercer poder pessoal sobre os demais. Almeja-se obter um olho na terra dos cegos para entre eles virar rei. Não é o altruísmo e a vocação para atuar pelo bem comum que movem a maioria das pessoas a ingressar nos cargos públicos e a concorrer a postos eletivos, mas, sim, a chance escancarada de, dessa maneira, “se arrumar” na vida. Exceções? Sim, existem. Pena que pregam sozinhas no imensurável deserto de almas em que a sociedade se transforma em todas as suas esferas.

Descobri que há algumas filosofias orientais que têm como premissa a crença de que tudo é ilusório nesse mundo, nessa existência. A matéria é ilusória, os seres, as coisas, nada existe de fato. Vivemos presos a uma ilusão criada pelos sentidos, que detectam apenas os efeitos da matéria. Daí a doença essencial da alma, que nos desvia da verdade. Vou adotar essa filosofia, pois só assim para me convencer de que não existem o Eduardo Cunha, nem o Jair Bolsonaro, nem o Tiririca, nem...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de abril de 2016)

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Da tribuna da crônica mundana III

E-leitores e e-leitoras (“e” de “eletrônico”, o mesmo “e” usado em “email”, “e-commerce”, e-tecétera e-tal)! Do alto da tribuna desta crônica mundana, decido trair as diretrizes de meu partido, o PCdaM (Partido dos Cronistas da Mundaneidade), indiferente às eventuais ameaças de expulsão (que virão e que rechaçarei com veemência, por se tratar de ataque a mim, coisa que, anteriormente, quando envolvia os outros colegas, eu era o primeiro a condenar), e passar a cronicar aqui neste espaço (que me é de direito por mim conquistado de forma arbitrária e indireta) única e exclusivamente em defesa de minha causa própria (agora releia a sentença pulando os parênteses, para que possa obter o sentido da frase, uma vez que nem sempre estou aqui para facilitar a compreensão de leitura de ninguém).
Chega, estimados e-leitores e admiradas e-leitoras, de utilizar a nobreza e extensão deste tão cobiçado espaço para desenvolver crônicas literárias permeadas de duplos sentidos e subtextos ocultos nas entrelinhas. Chega de pretender divertir o leitor proporcionando-lhe também aspectos para a reflexão. Não, não, a era do altruísmo está com seus dias contados na esfera das crônicas mundanas. Os tempos são outros, é preciso saber decifrar as nuances do novo espírito da época (o “zeitgeist” a que aludiam certos filósofos, mas não usarei mais termos complexos), e sábio é aquele que detecta a mudança a tempo e se adequa. Só os rapidinhos é que sobreviverão e, portanto, apresso-me.
Meu mandato de cronista será usado para que eu me locuplete a mim mesmo com tudo o que eu puder amealhar para mim no exercício da atividade. Quero para mim todos os louros; todos os aplausos; todas as curtidas com carinhas faceiras; o reconhecimento nas calçadas; os apertos de mão; os beijinhos na face; os parabéns; os elogios. Em troca, por baixo dos panos, elogiarei também os generosos e-leitores e e-leitoras, mas negarei tudo quando algo vier à tona. Negarei e atacarei a quem me ataca; desacatarei a quem me desataca... destaca... destro... Embananei agora, senhora e-ditora, mas me faço e-ntender. É preciso estar ventando em sintonia com os ventos e, de tanto ver vencer as nulidades, anulo-me em uníssono, para que Brasília não pense possuir a primazia de abrigar o lema do “e-u por mim e todos também – por mim”.

Eu prometi que me posicionaria, e um cronista mundano, quando promete, cumpre: posiciono-me a favor de mim mesmo! Afinal, não serei eu a marchar fora do passo nesse país!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 d abril de 2016)

terça-feira, 26 de abril de 2016

Da tribuna da crônica mundana II

Como já diziam os antigos, é preciso aprender com os exemplos que vêm de cima. Eu, na condição de integrante compulsório daquilo que se conhece como “povo brasileiro”, também sou representado pelos políticos federais em âmbito nacional; estaduais em seara estadual e municipais em esfera municipal. Os políticos agem, e lá estou eu, representado. Quer eu queira, quer não. Os políticos aprovam leis, xingam uns aos outros, derrubam presidentes, cospem, aplaudem criminosos, atropelam as leis que eles mesmos criam, falam asneiras, analisam o sexo dos anjos, cabulam sessões, metem-se em maracutaias e passam a ser investigados, investigam uns aos outros, dão tapinhas nas costas e lá estou eu, como sempre, representadíssimo. Quer eu queira, quer não. Já disse, eu sei, mas é importante sublinhar essa condição compulsória, nobre leitor, excelentíssima leitora.
Pois então, como é vital aprender com os exemplos que vêm de cima (no caso do mapa do Brasil, Brasília está acima do Rio Grande do Sul, situação que favorece estados nortistas e nordestinos, ou não, já que, no caso deles, o exemplo vem é de baixo mesmo, tudo é uma questão de ponto de vista), eu, que sou brasileiro, também quero proceder igual aos deputados federais e oferecer esta minha crônica a todos aqueles que julgo importantes de serem homenageados por mim. Porque se declaração de voto na Câmara dos Deputados pode ser ofertada, crônica também pode. Eis que me coloco aqui, compulsoriamente, em defesa dos direitos dos cronistas mundanos e, se houver algum aí que por mim se sinta representado, una-se a mim em uníssono, porque “cronistas mundanos unidos, jamais deixarão de ser lidos”!

Assim, senhor presidente, eu gostaria de oferecer esta crônica para o meu pai, a minha mãe, aos meus avós, à minha esposa, à minha irmã, aos meus tios e primos, aos sogros, aos cunhados e cunhadas e sobrinhos e afilhados, e aos amigos e amigas, e aos meus bichinhos de estimação que já morreram todos mais ainda os estimo, e a todos os meus personagens, e às Musas inspiradoras que me sopram inspirações mundanas, e a Deus (não, ainda não estou me despedindo, só mais um pouquinho, Sua Vossa Excelência minha), e aos editores e diagramadores deste jornal, e aos prestimosos leitores e às admiráveis leitoras, à família brasileira, aos políticos que nos representam, à mãe do Badanha (tão esquecida), aos juízes de futebol, aos escritores, ao Kid Abelha que acabou... Ah, eu tinha de fazer isso! Sinto-me tão integrado!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de abril de 2016)

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Da tribuna da crônica mundana

Ah, mas de hoje não passa! Desde que comecei a assinar este espaço neste periódico, sinto-me, como em nenhum momento antes, determinadamente preparado e inspirado para abordar o assunto. E agora, vai. Prepare-se, estimado leitor; prepare-se, prestimosa leitora. Algo novo está a se descortinar por estas mal digitadas linhas na edição de hoje. Sim, porque, depois de tanto protelar, hoje eu falarei sobre o tema.
Aqueles que esperavam do mundano cronista um posicionamento, terão, então, hoje, esse posicionamento. Saberão se é vermelho ou azul, preto ou branco, gato ou cachorro, cravo ou rosa, queijo ou goiabada. A era do equilíbrio claudicante por cima de muros e grades pontiagudas finou-se. Lugar de pelicano é no mato, já dizia a minha avó, seja lá o que ela quisesse dizer com isso, mas que ela dizia, ah, isso dizia, e sacudindo o longo e fino dedo indicador da mão direita apontado direto para os narizes de nós todos, os netos. E se tem coisa que netos possuem de sobra é nariz, que costumam ficar enfiando onde não são chamados. “Lugar de pelicano é no mato!”. Ah, se é! O nariz agora foi chamado, e está pronto para entrar em cena.
E vou dizer o que penso sem destemor, sem meias-palavras, porque quem me lê e me acompanha sabe que, aqui neste espaço, uso sempre as palavras inteiras, conforme é meu direito e amparado no auxílio atento do corretor do word que se apressa a concluir por conta própria qualquer palavra que eu me enfie a digitar, impossibilitando, mesmo que eu assim o desejasse, o uso de palavras pela metade. Palavras usam-se inteiras, no pleno vigor de suas cargas cognitivas, significado e significante, símbolo e analogia. Signo é signo, e o meu é câncer, obrigado. Nada ficará pela metade aqui. Doa a quem doer, incomode a quem incomodar.  Perderei amizades na rede social, serei bloqueado por uns e aclamado por outros, pagando o preço justo decorrente do posicionamento, que é o fim da unanimidade. Cronistas mundanos jamais são unânimes.
Abusarei dos períodos longos e intercalados, repletos de apostos e vírgulas – até travessões serão conclamados a vir em auxílio da empreitada –, atropelando a forma em favor do conteúdo porque, sim, há momentos em que os fins justificam os meios, especialmente quando temos dois anos de idade e fazemos cara de choro ao pedirmos mais um chocolate. Direi e nada temerei. Mas eis que a coluna chega ao final. Ah, que pena! Queria dizer que sou contra a prolixidade. Sou contra!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de abril de 2016)

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Nada mais que um dia a mais

Ontem foi mais um dia na soma de todos aqueles que até aqui perfazem os dias de minha existência. Amanhã será outro. O de hoje já começou a mil, ainda antes de eu perceber e, quando embarquei nele, o sol já trabalhava há horas, os passarinhos já haviam celebrado a alvorada, os ônibus já tinham colhido as gentes nas paradas, os trabalhadores da construção civil já se distribuíam pelos andares dos prédios a serem concluídos, os estudantes já escutavam seus mestres nas salas de aula, os semáforos organizavam o fluxo dos automóveis em todas as esquinas, as babás estavam nas creches, os vigilantes noturnos já vestiam os pijamas em casa e punham-se a dormir, os varredores e varredoras varriam as calçadas, as padarias desovavam o pão quentinho e as cafeterias serviam expresso e pão de queijo para a clientela apressada e acordante.
E eu dedicava-me a viver um dia a mais nos dias de minha existência. Mas um dia a mais jamais se reduz a apenas um dia a mais. Cada dia a mais é muito mais do que somente mais um dia, porque cada dia, em si, é um presente recebido pela vida e nem sempre nos damos conta da dimensão desse regalo vital com que somos agraciados. Quando estamos doentes, quando nos recuperamos de uma doença preocupante, quando vencemos um obstáculo terrível, quando algum ente querido morre, aí sim, abrimos nossa consciência para a percepção do valor de vivermos mais um dia, mesmo que seja um simples e corriqueiro dia como todos os outros, esses dias de terça-feira, de quarta-feira, de segunda ou sexta, esses dias banais acotovelados de contas a pagar, tarefas a cumprir, compromissos a honrar, trânsito a enfrentar, crises a administrar, cansaços a domesticar, esses dias mesmo, cada um deles, tão vitais, tão únicos, tão importantes.

Ontem foi um desses dias, hoje é outro. Dias que permitem encher os pulmões de ar, vislumbrar as luzes do cenário ao redor, espiar nuvens, molhar-se com chuva, derreter com calor, reclamar do tempo, ver gente, falar com gente, pensar coisas loucas, sonhar com a loteria, gargalhar com uma criança e gargalhar como uma criança, zangar-se, curtir alguém, tomar um cafezinho, pegar o ônibus, dirigir o carro, fazer um happy hour, recusar um convite com uma desculpa furada e ficar em casa vendo tevê, rever um amigo, almoçar num bufê a quilo, ver um filme, ler um livro, navegar na internet. Cada dia assim é um imenso presente. Ganhamos 365 presentes desses por ano. Lembramos de agradecer por dois ou três. Somos mesmo uma gente muito distraída.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de abril de 2016)

quinta-feira, 21 de abril de 2016

A hora e a vez de Diolinda

Nunca surgira, em meus textos, uma personagem chamada Diolinda. Por mais que já tenha escrito contos, poemas, romances e trens de crônicas, jamais, por página alguma entre essas de minha lavra, esgueirou-se Diolinda. A impressão que tenho é de que, a bem da verdade, ela sempre esteve por aí, rondando, porém, na moita, esperando o momento certo de se anunciar e exigir manifestação por entre meus dedos escreventes ao empunhar uma caneta contra folhas em branco ou ao pipocar as digitais sobre os teclados dos computadores. Um iceberg de paciência, essa Diolinda.
Paciência e esperança. Sim, esperança, porque, se é verdade que ela esteve à espreita desde os primórdios, então, precisou amparar-se firme na convicção que lhe proporcionava a esperança de que, mais dia, menos dia, haveria de surgir o momento certo de ela se manifestar. Foi assim que viu irem sendo preenchidas as páginas e as telas com o desfile de personagens que deram vida aos citados contos e romances e poemas e crônicas, sem que lhe aparecesse vez e oportunidade. Deu ela, assim, lugar ao corso de vários outros que não eram Diolinda, como Otto, Salarini, Irma, Clara, Stefan, Morgana, Dona Esmeraldina, Argentino, Blanco, Yoshima, Petrus, Beatriz e outros, muitos outros. Diolinda, nunca. Diolinda ficava à espera.
O que fez Diolinda esse tempo todo, todos esses anos? Tricotou? Não, que Diolinda não é dada às lides manuais, que eu sei. Leu? Ah, isso sim, leu muito, porque Diolinda é ser amigado dos livros. Pensou e refletiu? Por certo que sim, e nem poderia ser diferente, nessas condições. Há de ter pensado muito e de ter refletido bastante Diolinda no silêncio e na solidão de seu não-existir, já que, além de não ter sido privilegiada com o sopro da vida tangível, Diolinda ainda teve de amargar tanto tempo à espera de vir à luz enquanto ser de papel, o que, para o alcance de seus desejos, se configura na realização maior a que se vê destinada.

A partir de agora, então, Diolinda é, pois que passa, enfim, a existir como personagem. Venha, Diolinda, manifeste-se, então, que é chegada a sua vez. Como? O que há? Não quer? Prefere esperar mais um pouco? Talvez outro momento, mais apropriado, em que o mundo ao redor esteja menos confuso, estranho, sombrio, agressivo, conflagrado, triste? Tudo bem, Diolinda, é você quem sabe. Eu, de fato, não lhe posso oferecer um mar de rosas pelo lado de cá da existência, nem na física e nem na de papel. A coisa anda mesmo estranha. Até mais ver, Diolinda. Quem sabe, um dia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de abril de 2016)

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Os perigos da meia-notícia

Notícia que fica pela metade, que não diz de onde veio o fato e para onde foi a consequência do fato, não é notícia, é meia-notícia. Notícia que fica pela metade revela ter sido escrita por jornalista desprovido de curiosidade, que não fez a si mesmo as perguntas que deixou em aberto para seu público leitor. E jornalista desprovido de curiosidade é um meio-jornalista. Somente meios-jornalistas são capazes de produzir meias-notícias, e meias-notícias, convenhamos, cheiram mal.
Cheiram mal e obrigam o leitor a preencher as lacunas do enredo a seu bel prazer, o que faz com que o fato noticioso acabe se transformando, a depender da imaginação de cada um, em uma narrativa ficcional. O que nem sempre é saudável para a verdade histórica dos fatos. Vejamos, para ilustrar a tese, um exemplo recentemente publicado (que eu sei que a estimada leitora e o prestimoso leitor apreciam o momento dos exemplos), ocorrido na longínqua Austrália, a terra dos bumerangues e dos cangurus. Gosto de ler notícias sobre a Austrália porque aquela é uma região do planeta que me fascina desde criança, devido à existência nela de animais muitíssimo esquisitos. Entre eles, a équidna (já viste foto da équidna, madame?), o ornitorrinco (o amigo leitor já deve ter visto ornitorrincos), o pássaro kiwi (sim, sim, madame, é um pássaro),o ágil dingo e o casuar. Este último foi quem causou.
Fiquei sabendo, por meio de um site de notícias, que, dia desses, um casal de australianos (de humanos australianos) levou um baita susto ao chegar em casa e deparar com um enorme casuar enfiado dentro da sala de estar. O casuar, se a senhora e o senhor não sabem, é uma ave gigantesca, de cerca de um metro e meio de altura, considerada a ave mais perigosa do mundo, devido à sua agressividade. E ponto, foi isso. A matéria não diz de que maneira a ave entrou na casa (tampouco a razão) e nem de que forma foi (e se foi) retirada de lá.

Como cabe a cada um de nós preencher as lacunas deixadas em aberto, com licença, lá vou eu, apresentar a minha versão dos fatos. O casuar queria assistir na tevê a cabo à transmissão da votação do impeachment da presidente Dilma, na Câmara dos Deputados brasileira e não pensou duas vezes: invadiu a sala, pegou o controle remoto e pôs-se a ver aquela coisa. Não é preciso dizer que, pouco depois, apavorado, fugiu da sala sem que fosse necessário chamar os bombeiros e afiar os bumerangues. Minha versão é essa. Se a da senhora for melhor, fique à vontade.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de abril de 2016)

terça-feira, 19 de abril de 2016

A questão é a chave

Somos, nós, seres humanos, movidos e motivados, muitas vezes, por impulsos e pulsões que nem mesmo nós conhecemos claramente. Essas forças psíquicas tanto nos fazem agir, tomar atitudes, quanto comandam nossas reações aos estímulos externos. E nem sempre elas têm nome, ou uma face reconhecível. Na maioria das vezes, na verdade, gostam de se manter quietinhas na sombra, ali, na moita do indecifrável jardim de nossas personalidades. Mas, mesmo que aparentemente discretas, elas estão ativas, positivamente operantes, quer queiramos ou não, quer as reconheçamos ou não. Daí as surpresas (e também os sustos) que às vezes temos frente a nós mesmos.
Exemplo disso pode vir quando nos questionamos (ou quando somos questionados) a respeito de quais as energias, ou sensações, ou sentimentos, que movimentam as mais poderosas forças de nosso ser? Em outras palavras, o que nos move? Da mesma forma, qual é o caminho para melhor atingir nossos corações? Qual a chave? Cada um tem uma, decorrente de sua própria personalidade, das experiências que vivenciou e da maneira como enfrentou e trabalhou essas experiências. Mas temos consciência disso? Ou seguimos agindo comandados pelo impulso inconsciente e ainda obscuro dessas motivações, sem sabermos nunca as razões pelas quais agimos de determinadas maneiras, nos aproximamos e nos afastamos de determinadas pessoas, fazemos certas coisas e deixamos de fazer outras, nos apaixonamos e desapaixonamos? O que somos? Quem somos? Por que somos assim? Ah, mistérios insondáveis da alma humana...
O escritor britânico Somerset Maugham (1874 – 1966) passeia pela questão em algumas linhas de seu romance “Servidão Humana”: “Não sei o que faz os outros amarem a gente, mas seja o que for, é a única coisa que importa e, quando ela não existe, não a podemos criar com bondade, generosidade ou coisa que o valha”. Ou seja, a força que desperta em alguém o sentimento de amor por nós é inescrutável e, se ela não existe no coração dessa pessoa por si mesma, não há o que se possa fazer deliberadamente para forçar seu surgimento. Machado de Assis (1839 – 1908) abordou o mesmo problema, de forma diversa, em seu conto “A Chave”, em que o enamorado Luís Bastinhos salva a linda Marcelina de um afogamento, mas isso não basta para abrir as portas do coração dela a ele. Só mais tarde, ao mostrar-se um exímio dançarino em um baile, é que o coração dela o acolhe. Conclui o autor: “a verdadeira chave do coração de Marcelina não era a gratidão, mas a coreografia”.

Pois, então, eis a questão: qual é a chave do seu coração?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de abril de 2016)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

O horror, os horrores!

Há vezes em que o mundo ao redor se assemelha a um verdadeiro circo dos horrores. Se formos elencar o que nos causa horror, somos capazes de preencher o espaço em jornal destinado à produção de crônicas mundanas diárias. Vamos ver?!
Podemos começar afirmando que tenho horror aos preconceitos, de todos os tipos, de todas as modalidades. Horror ao preconceito de cor de pele, de orientação sexual, de credo religioso, de raça, de condição social, de aparência física, de nível cultural. Os preconceitos relativos à cor da pele e à raça são dos mais antigos e perigosos e causam tanto horror que ganharam nome próprio para facilitar a sua detecção, quando se manifesta: racismo. Tenho horror a racismo. Da mesma forma, tenho horror à intolerância, que é a principal decorrência do preconceito. Ela se dá a partir do momento em que o preconceituoso se imagina seguro e autorizado a materializar seus preconceitos na vida prática e a atacar o objeto de sua intolerância. Tenho horror à intolerância. Tenho horror também à discriminação.
Tenho horror ao ódio, pois que esse sentimento, sempre que cultivado nos corações das pessoas, transforma os seres em monstros que propagam a intolerância e o preconceito. O ódio mata, destrói, fere, machuca, macula, mancha, estraga, atrasa. Tenho horror ao ódio. E tenho horror ao que se passou a conhecer como “bullying”, que é a “arte” (entre aspas, porque de Arte mesmo não tem nada) de oprimir os mais fracos atacando seus pontos mais frágeis, por puro prazer sádico. Tenho horror ao sadismo. E tenho horror à prepotência, porque ela é o alimento do sádico e do explorador. Ah, tenho horror à exploração, seja ela econômica, física, emocional, sexual, do tipo que for.
Tenho horror ao materialismo. Tenho horror à ganância. Tenho horror à cultura do “jeitinho”. Tenho horror à corrupção. Tenho horror de corrupto e de corruptor. Tenho horror à falta de educação, no sentido de “ser mal-educado”. Tenho horror à censura. Tenho horror a ditaduras gerais. Tenho horror a manipulações. Tenho horror de quem não sabe perder e também de quem não sabe ganhar. Tenho horror de quem muda as regras do jogo em benefício próprio. Tenho horror às coisas veladas.

Mas horror dos horrores mesmo seria achar que nada disso tem solução. Tem, sim, ela existe dentro de cada um, na força que possuímos para mudar o mundo a partir de nosso próprio entorno. O combate ao horror parte de dentro de cada um nós a cada dia em que levantamos e vamos à vida. Sempre alertas, como deve ser, porque os horrores não dão trégua nunca.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de abril de 2016)

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Para ficar na saudade

Dizem que a palavra “saudade” só existe na língua portuguesa. Não sei se é verdade, pois que pouco conheço das línguas do mundo, mal arranho o inglês e pratico o portunhol com uma destreza manca. Em inglês, o termo que mais se aproxima daquilo que se pretende expressar por “saudade” é o verbo “to miss”, ou seja, “sentir falta”. “I miss you”, que tanto se escuta nos filmes, expressa algo como “sinto falta de você”. Certo, tudo bem, até que passa a ideia da coisa, mas “sentir falta” não é exatamente o mesmo do que sentir saudades.
Encasquetado, fui dar uma olhada no que diz o meu exemplar do “Dicionário Etimológico”. Ao pescar o volume da estante, percebi que andava com saudade de manuseá-lo. Folheei as páginas e estacionei no verbete. Lá diz assim, a respeito de “saudade”: “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las”. O Dicionário Aurélio (que pesa como um gato gordo em meu colo sempre que a ele recorro, abrindo-o sobre os joelhos) acrescenta ainda que “saudade” também pode ser compreendida como “pesar pela ausência de alguém que nos é querido”. Mas gostei do conceito de “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave”.
Gostei porque é mais ou menos dessa maneira que sinto a saudade, quando ela me visita. E ela me visita com certa frequência, uma vez que sou de conformação nostálgica. Chego a pensar que há lógica na esperança (outra bela palavra, a também merecer futuras loas) de que “saudade” exista somente na língua portuguesa, uma vez que rima com o mito de que os portugueses seriam, em essência, um povo melancólico. A melancolia talvez seja uma das casas da saudade, ou, ainda, uma das fábricas de onde ela emerge, pronta para pedir assento no colo dos nostálgicos, onde dividem espaço com dicionários e gatos.

Eu, que de nostalgia tenho muito, mas que aprendi a domesticar minha melancolia, cultivo a saudade como um bem precioso para a renovação e a manutenção da sanidade de minhas ilhas internas. Chego a ter saudades do que não vivi, do que não vi, do que não ouvi e do que deixei de dizer e de fazer. Tenho saudade até de quem não conheço. Para que seja um sentimento sadio, se faz necessário não deixá-lo fundear âncora na inércia e, ao contrário, fazer com que se transforme em combustível para a renovação perene do entusiasmo pela vida. Afinal, é só com o acúmulo de vida e de vivências que podemos incrementar a listagem das boas saudades. Falando nisso, que saudade de comemorar um título do meu time...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de abril de 2016)

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Na hora do cafezinho

Chamava-se “Gato Preto” e julgávamos o nome muito bem escolhido para uma cafeteria cujo carro-chefe era o café expresso quentinho, recém-tirado, aromático e forte, bem como gostávamos. Localizava-se no meio de uma galeria que tinha uma das entradas pelo Calçadão de Santa Maria, cidade em que vivi meus anos de formação universitária e em que dei meus primeiros passos como jornalista profissional, nas décadas de 1980 e 1990. Não sei se o estabelecimento ainda existe. Poderia fazer uma busca Google para descobrir, ou contatar algum amigo que mora na cidade e sanar a dúvida, porém, para fins de tecelagem cronical, a manutenção da incerteza se impõe, pois que me cheira mais poética.
Eu já era repórter novato do jornal diário local e cumpria à tarde minhas trabalhosas pautas pelos bairros e centro da cidade, prancheta em punho para as enquetes com os cidadãos, óculos na cara, barba e cabelo. Muita barba e muito cabelo. E, também, muita vontade de reportar. Reportava até o entardecer, colhendo depoimentos para as reportagens especiais que redigiria ao findar da semana e, assim que a tarde ia caindo, dirigia-me ao “Gato Preto”, a fim de lá aguardar a chegada de um grande amigo que abandonara o curso de Letras e fazia cursinho pré-vestibular para ingressar em Medicina. Ele vinha e já me encontrava a uma mesa no mezanino da cafeteria, lendo e sorvendo a primeira de algumas das taças de expresso com conhaque que naquele ambiente compartilhávamos, debatendo literatura, cinema, conjuntura nacional e internacional e desconjunturas pessoais.

Não recordo de todos os livros lidos à espera do amigo, tampouco dos detalhes dos temas com ele largamente discutidos. Mas, ao evocar aqueles inesquecíveis momentos de consolidação de uma amizade, minha memória recupera com exatidão o aroma e o sabor daquelas taças de café expresso com conhaque. Com a mesma intensidade, recordo das sensações gustativas do tradicional café com chantilly ao final dos almoços em família em Ijuí, na adolescência. E das pausas para o café com fofoca com os colegas de redação em todos os jornais em que trabalhei. Ao longo dos séculos, o café vem se consolidando como um gatilho para a socialização em todas as suas formas, bem como companhia para momentos de introspecção como este, ao bordar esta crônica para ser publicada no Dia Mundial do Café. Erga uma taça e deixe a memória afetiva levar-se a passear pelas sugestões de seu sabor e aroma.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de abril de 2016)

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Truques para saciar o desejo

Súbito, fomos ambos possuídos pelo desejo. As faíscas resultantes da troca de olhares sintonizados em intensidade e intenção indicavam que o desfecho da noite seria incontrolável, irreprimível. Inútil lutar contra o impulso, impossível represar a torrente da convicção íntima de que, sim, deveríamos nos entregar à satisfação daquela sanha que nos consumia a ambos por dentro. E a culpa? Haveria culpa depois? Claro, tínhamos também certeza absoluta de que a culpa tomaria o lugar do desejo assim que os instintos fossem saciados, mas, mesmo assim, seguimos em frente, determinados, sôfregos, ávidos, totalmente entregues. Arcaríamos, ela e eu, com o peso da culpa e com o martírio póstumo do pecado cometido. Mesmo assim, chegaríamos em casa após o trabalho e produziríamos, em tempo recorde e em conjunto, um ratatouille para jantar às dez da noite em pleno meio de semana!
O ratatouille é um prato simples (apesar do nome sofisticado) e rápido de fazer, com efeito saboroso, nutritivo, sadio e leve. O que consome tempo e energia é o processo de picar e cortar os ingredientes. Botando-se a fazê-lo sozinho, o cozinheiro de fundo de quintal, como é o meu caso, pode levar até cerca de meia hora só na fase de preparo de todos os legumes, dependendo de sua destreza no manuseio da faca e dos tomates, das abobrinhas, das cebolas, dos pimentões, das berinjelas. Existem formatos a serem obedecidos, espessuras de cortes, limpezas específicas, afinal, boa parte do sucesso de um prato, mesmo que preparado para o cotidiano do lar, reside na sua aparência ao ir à mesa, e o ratatouille também tem disso.
Porém, trabalhando em equipe e de maneira organizada, obedecendo a um rígido planejamento anterior elaborado com cuidado (o que foi feito dentro do carro ao longo do trajeto entre o trabalho e o lar), sabedores de que todos os ingredientes estavam, cúmplices que eram, aguardando dentro da geladeira, é possível reduzir o tempo de preparo do prato a um terço do necessário. Foi o que fizemos. Enquanto um cortava as abobrinhas, outro picava os tomates. Um fatiava a berinjela e o outro reduzia os pimentões a tiras. Um fritava a cebola e o outro preparava o caldo de legumes.

 Dessa maneira, seguindo o script à risca, conseguimos sentar à mesa e saciar nosso desejo louco e inexplicável por um ratatouille em apenas 40 minutos após chegarmos em casa, saindo do zero. Planejamento e trabalho em equipe ainda são as melhores ferramentas para se atingir um objetivo (ou desejo) comum, inclusive em se tratando de devorar um ratatouille.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de abril de 2016)

terça-feira, 12 de abril de 2016

Data para ser levada a sério

Parabéns a você, que se dedica profissionalmente à tarefa (dificílima) de fazer as pessoas rirem, pois que hoje, 12 de abril, é o seu dia! Não sabia? Não tem problema, isso é comum. Dias atrás (7 de abril) eu também fui largamente parabenizado pelo Dia do Jornalista e desconhecia a data. Mas, no meu caso, tratava-se de pura distração mesmo, já que sou jornalista há anos e a data comemorativa também existe há bastante tempo. No seu caso, prezado humorista, trata-se de novidade relativa (o que explica e justifica o eventual desconhecimento), pois que este é recém o segundo ano em que se comemora o Dia Nacional do Humorista, instituído oficialmente em 2015, a partir da sanção presidencial.
O dia 12 de abril foi escolhido para homenagear essa categoria profissional no país por ser o aniversário de nascimento de um dos mais geniais humoristas já surgidos em solo pátrio: Chico Anysio, que morreu em 2012, deixando uma ampla lacuna de criatividade, humor inteligente e genialidade impossível de ser minimamente preenchida. É em Chico Anysio, aliás, que eu pensaria de imediato se fosse eventualmente convidado a direcionar meus parabéns pelo Dia Nacional do Humorista. Como ele já morreu, precisaria pensar em outro nome, que esteja na ativa, para redirecionar minhas felicitações. Alguém que simbolizasse nos dias de hoje toda a finesse necessária para se fazer humor de qualidade, aliada a inteligência, bom gosto, criatividade, ousadia com respeito, originalidade, surpresa e, o mais importante de tudo; graça. E daí me vem à cabeça, imediatamente... me vem... assim, de imediato surge o nome de ... bem... de...

Chico Anysio! Não, Chico já morreu, como vimos acima. Pensemos outro. Claro, tem o Jô Soares, que continua inteligente e bem-humorado, mas há anos direciona seu talento para um programa de entrevistas (onde seu refinado humor impera, é verdade) e não mais à produção profissional de humor. Poderia citar Agildo Ribeiro ou Moacyr Franco, mas andam meio sumidos. E, nesse rastro, só me surgem nomes da antiga (vivos ou mortos): Os Trapalhões (o quarteto clássico formado por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias), José Vasconcellos, Juca Chaves, Apparício Torelly (o Barão de Itararé), as turmas do Planeta Diário e da Casseta Popular quando ainda faziam humor impresso (antes de irem para a TV), o quadrinista Canini, o cartunista Péricles (criador de “O Amigo da Onça”)... É, ficou difícil. Vejo-me, súbito, detectando o surgimento de uma estranha crise de humor. Ou estarei eu ficando chato? A se pensar...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de abril de 2016)

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Do mofo ao som da vida

O tempo passa, o tempo voa. E com ele voam também algumas de nossas maneiras de vermos o mundo. Ao lado do passar acelerado do tempo, voam emparelhados alguns conceitos que, dependendo do caso, rumam adiante, focando a evolução e, outros, dão marcha a ré na mesma velocidade, caducando e sendo ultrapassados pelas novas formas de encarar a vida, a sociedade, as relações humanas. Nada é estático, isso aprendemos a perceber desde muito cedo. O que impressiona, às vezes, é a maneira como alguns conceitos se transformam radicalmente em poucos anos, após passarem séculos praticamente estacionados. A seguir, o exemplo que ilustra a tese, para não deixar o leitor a caçar borboletas.
Tirei algumas horas do final de semana para degustar a digitalização que mandei fazer de algumas antigas fitas VHS que estavam ocupando espaço e acumulando pó na prateleira. Como meu aparelho de videocassete abandonou meu lar há tempo, fazia anos que eu não assistia ao que estava ali gravado (um dos atrativos dos videocassetes é que era possível gravar os programas de televisão nas fitas) e larguei-me à sessão “mergulho no passado”.
Uma das fitas que mais me chamou atenção foi aquela em que gravei todo o histórico primeiro show que os Rolling Stones fizeram no Brasil, trazendo ao Rio de Janeiro a turnê “Voodoo Lounge”, em janeiro de 1995 (21 anos atrás, portanto). Ao final da eletrizante apresentação, transmitida ao vivo a todo o país pela Rede Globo, o repórter Maurício Kubrusly, visivelmente emocionado (como de resto, todos os milhões que acompanharam a performance dos afamados roqueiros britânicos), pontuou suas considerações finais sublinhando o impressionante show de vitalidade no palco demonstrado por aqueles “senhores de 51 anos de idade”. Incrível como o espanto do repórter (irmanado ao espanto unânime da plateia nacional) soa hoje totalmente desprovido de sentido.

Sim, porque, nos dias de hoje, não há mais nada de espantoso em assistir à vitalidade pulsante nas pessoas que rondam os 50 anos de idade (e os 60, e os 70 e 80). O conceito de juventude, maturidade e velhice evoluiu aos saltos em apenas duas décadas, a ponto de os mesmos Rolling Stones retornarem agora ao Brasil e seguirem pulando no palco, aos mais de 70 anos de idade, e isso não ser mais motivo de espanto. Viver é espantar-se continuamente. E no que depender de minha torcida, que Mick Jagger siga rebolando no palco por mais alguns séculos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de abril de 2016) 

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Hora de rever os estoques

Quanto mais vamos convivendo conosco, mais vamos aprendendo nuances sobre nós mesmos. Incrível isso, não? Eu, por exemplo. Vira e mexe descubro aspectos sobre mim mesmo que, até o momento da revelação (“insight”, diria minha psicóloga, tivesse eu uma), me eram obscuros. E, aí, fico surpreso. Dia desses, só para dar um exemplo (e, por meio desse exemplo, tecer uma crônica, vá lá, confesso), me dei conta de que sou uma pessoa que gosta de lidar com estoques.
É. Isso aí. Estoques. Fico até tentado a imaginar que, não tivesse enveredado de cabeça nas áreas do jornalismo e da escrita, eu poderia me dar bem no cargo de gerente de estoques. De preferência, de um supermercado, pois que adoro perambular pelos corredores de supermercados. De planilha em punho e os olhos bem abertos, percorreria as gôndolas, pararia defronte a uma delas e ditaria ao meu ajudante (sim, pois, se é para ser gerente de estoques, eu quero que haja subordinados às minhas ordens, porque, sem poder mandar, não teria graça nenhuma): “anota aí, Geofredo, os ovos estão no fim; contate as galinhas e encomende mais ovos”. Nada de ser pego desprevenido. A falta de ovos jamais me deixaria com as calças na mão.
Aqui em casa, eu sou o rei dos estoques. Estou sempre atento a tudo e procuro não deixar faltar nada. Tenho estoque de manteiga na geladeira, pois, se acabar a manteiga que está em uso, não preciso sair correndo atrás de manteiga, já que tenho duas embalagens de reserva prontas para uso. Tenho estoque de creme dental, de sabonete, de papel A4, de feijão em caixinha, de tinta para impressora, de clipes, de café em pó e granulado, de ideias para crônicas, de livros para ler, de filmes para assistir, de xampu, de bloquinhos de anotação, de protetores auriculares, de calorias a serem gastas, de bobagens a serem ditas, de piadinhas repetitivas e sem graça, de fome, de gula, de óleo de oliva...

Só não tenho estoque de tempo. E nem de dinheiro. O que é óbvio e redundante, porque, se tempo é mesmo dinheiro, ao não possuir estoque de um, automaticamente, não possuo do outro. Devo ter parentesco com formigas em minha árvore genealógica, já que, com elas, compartilho essa mania de estocar. Ou, o que é mais provável, tudo não passa de apenas mais uma manifestação de minha característica ansiedade. Sou ansioso. Por isso, estoco. Nesses tempos conturbados que vivemos, seria interessante passar a estocar lucidez, paz, mansidão, tranquilidade, silêncios. Pode vir a ser útil. Vou pensar nisso.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de abril de 2016)

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Nem pizza é apenas pizza

Eu gosto de pizza. Escrevo frases de efeito impactante como esta, no início de algumas crônicas, na esperança de que aqueles leitores mais apressados, que não tencionam ir até o fim do texto porque têm mais o que fazer, creiam que eu seja um cara normal. Afinal, moro em Caxias do Sul e, aqui por essas plagas, quem não gosta de pizza, bom sujeito não é, conforme diz aquele samba. Como, senhora? Nenhuma letra de samba conhecida diz isso? Ah, mas então é alguma musiquinha em dialeto. Juro que já escutei. Mas deixa pra lá. Adiante.
Daí, há aqueles leitores que, por alguma ou outra razão que prefiro até nem conhecer, decidem ler até o final, e é esses que acabam descobrindo a verdade dos fatos. Como eu dizia, eu gosto de pizza. Mas... É nas reticências que mora a incerteza, como já dizia... Hein? De novo, senhora? O que foi dessa vez? Ninguém nunca disse isso? Ah, por favor... Havia, sim, em Uvanova, um noninho que dizia. Ponto. Conhece Uvanova? Não? Ah, pois então! Adiante com essa coisa.
Como estou a tentar dizer, eu sou caxiense (por adoção e opção) e gosto de pizza (por indução e, algumas vezes, por falta de opção). Mas como nem sempre tenho tempo ou vontade (“vontade”, em dialeto, se diz “fiorini”, se não me engano) para frequentar pizzarias ou para produzir uma pizza em casa, aí, decido passar no supermercado e adquirir uma dessas caixas com pizza já pronta dentro, basta colocar no forno (sem a caixa) por alguns minutos e ir arrumando a mesa. Até aí, tudo bem. Problema é que eu gosto de pizza à portuguesa, e aí é que a vaca torce o rabo. Opa. A porca. Obrigado, madame. A senhora, sempre atenta, hein? Até o fim. A porca é quem torce. Adiante.

A pizza à portuguesa, como se sabe, é composta por tirinhas de cebola, pimentão e presunto que deveriam permanecer equilibradamente dispostas sobre a pizza, cobrindo toda a extensão da circunferência, da mesma forma como o fazem o queijo, o tomate e as azeitonas. Só que, devido ao transporte do produto da gôndola do supermercado até a mesa de casa, os três ingredientes supracitados sacolejam e acabam se agrupando em dois ou três bandos compactos em certas áreas da superfície da pizza, deixando as outras regiões despovoadas de cebola, pimentão e presunto. Isso é muito chato. Mas eu desenvolvi uma técnica para burlar essa armadilha e apreciar o potencial que a pizza oferece. Só que não vou revelar. As pequenas artimanhas a que lançamos mão para proporcionar a nós mesmos um cotidiano mais feliz devem ser guardadas a sete chaves. Afinal, há quem nos julgue normais...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de abril de 2016)

terça-feira, 5 de abril de 2016

Verdades na hora do chá

Que ninguém é uma unanimidade, isso é unânime, todos sabem e concordam. A Dilma que o diga, por exemplo. O Aécio também. E eu mais também ainda. Apesar de mundano, tenho consciência de que minhas crônicas não agradam a gregos e troianos em sua totalidade (principalmente porque não escrevo em grego). Sei que existem os que leem meus textos e gostam deles (a quem adoro e endeuso); os que também gostam, mas não leem (aos quais desculpo); os que detestam e, mesmo assim, leem (a esses não compreendo) e ainda os que, justamente por não gostarem, não leem (estes, muito honestos e coerentes).
Assim se dá, em suas nuances específicas, com todos aqueles que, de alguma ou de outra forma, se expõem ao público (né, Dilma e Aécio?) e precisam lidar com a não-unanimidade que todos os seres humanos geram ao seu redor, sejam pessoas públicas ou não. Basta sermos pessoas para que haja quem goste da gente ou nos deteste, quem aprecie ou desaprove o que fazemos. Faz parte do ônus e do bônus de viver e de atuar em sociedade. E é preciso saber administrar com maturidade essas sensações e reações que provocamos em nosso entorno, muitas vezes sem querer e sem perceber.
Na maioria das vezes, tiro de letra essa coisa de lidar com os gostares e os desgostares alheios. Isto posto, permito-me revelar que existe uma regra que confirma essa exceção... Quer dizer, uma exceção que confirma essa regra. Trata-se daquele grupo de senhorinhas que se reúne ao final das tardes de quintas-feiras, nos cafés da cidade, para ler minhas crônicas (que detestam) e xingar a mim in absentia (a quem detestam ainda mais, por tabela). Já faz anos que sei da existência desse grupo de senhorinhas leitoras cuja média de idade é de 80 anos (a média se mantém há décadas porque novas integrantes vão sendo sazonalmente admitidas) e que me odeiam, porque me enviam missivas (e agora e-mails, pois que se modernizam também elas) raivosas e ameaçadoras.

O que mais as incomoda é esse meu alegado estilo mundano repleto de períodos longos demais e generosos em apostos, nada recomendáveis para leitores de fôlego curto que perdem a respiração já na metade do caminho, sem conseguirem compreender patavinas daquilo que eu havia me proposto dizer lá no início, o que nem sempre é uma verdade, como poderão detectar na frase a seguir, curta e grossa. Tenho dito. O que me consola é saber que toda a unanimidade é burra. Tanto para um lado, quanto para o outro. E é preciso ficar alerta quando se começa a viver uma era de unanimidades. Palmas às senhorinhas do chá!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de abril de 2016)

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Quem procura, acha; acho...

Agora sim, parece que a coisa vai! A partir de novos aportes de recursos (bilionários recursos, ressalte-se), provenientes de entusiasmados apoiadores particulares endinheirados, do porte de empresas como Google, HP, Microsoft e outros, o Projeto SETI (sigla inglesa para o Instituto de Busca por Inteligência Extraterrestre) ganha novo fôlego. A iniciativa reúne cientistas de todas as ordens e de diversas nacionalidades que, a partir do rastreamento do universo em busca de sinais de ondas de rádio, vem acumulando e estudando dados desde a década de 1960 na esperança de identificar vida inteligente e adicioná-la às redes sociais terráqueas.
Como, ao longo das décadas, não se conseguiu detectar bulhufas, a grana dos investidores foi minguando, minguando... Porém, agora, com a súbita renovação do interesse pela coisa, 42 antenas ultramodernas foram instaladas na Califórnia para dar sequência ao projeto de rastrear o universo em busca de sinais de vida inteligente. Um aspecto que me chama a atenção de cara é que todas as 42 antenas estão, desde já, posicionadas DE COSTAS para a Terra. Ou seja, levo fé nos cientistas, pois eles não desperdiçam tempo com bobagens. Ora, se o propósito é procurar sinais de vida INTELIGENTE, então, não é para a Terra que eles vão direcionar a mira das antenas. O saudoso humorista brasileiro Barão de Itararé não era cientista, mas já antecipava que “de onde menos se espera, dali é que não sai nada mesmo”. Portanto, olhos e ouvidos pregados no céu!
As antenas do Projeto SETI estão imbuídas de uma missão que lembra a saga pessoal a que se impôs o filósofo Diógenes, que viveu na Grécia entre os séculos três e quatro antes de Cristo. Tendo ficado muito pobre, diz-se que morava dentro de um imenso barril e que, durante o dia, perambulava pelas ruas de Atenas portando uma lamparina acesa. Quando indagado a respeito daquela atitude estranha, respondia que estava à procura de um homem honesto. Difícil missão a que se impôs Diógenes. Não sei se encontrou o objeto de sua procura e, para alívio geral das nações e das gerações humanas posteriores, deu por encerrada a busca assim que morreu.

Eu, assim que ficar bilionário, vou subornar os cientistas do Projeto SETI para que reprogramem pelo menos uma das antenas e direcionem-na para a Terra, a fim de dar continuidade ao projeto de Diógenes, que acho de maior valia e de mais premência. Hein? Que disse a senhora? Ah, sim, claro. Subornar, não, sugerir. Sim, desculpe, foi vício de linguagem, afinal, sou terráqueo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de abril de 2016)

domingo, 3 de abril de 2016

Os portadores de trevos

A lembrança me vem em recortes, como costuma acontecer com as recordações de episódios que marcaram nossas infâncias. A fim de que esses recortes propiciem um enredo sensato, anos mais tarde, na época das nostalgias (como agora, habitando que estou a estação das cãs), vamos organizando-os ao arrepio da veracidade histórica (que se perdeu nas brumas do tempo) e em favor do enriquecimento do nosso baú particular de façanhas vividas (imaginárias ou não, fantasiosas ou não, reais mas com temperos, como no caso da que segue).
Acredito que eu tinha uns oito ou nove anos de idade, não mais do que isso. Morávamos em Ijuí e havia uma festa de família no interior da cidade vizinha de Santo Ângelo (creio que se tratava do casamento de um primo de minha mãe). Não recordo patavinas da cerimônia religiosa, e da posterior festa em si, onde ocorreu, quem estava lá, essas coisas. Mas eu estava lá, isso, com certeza, e é por isso que existe a lembrança e a história, que vem a seguir.
Como sói acontecer em eventos dessa natureza, havia um bando de crianças a correr e a arrepiar o salão onde rolava a festa (detalhe: estamos falando do início dos anos 1970, época em que crianças não dispunham de aparelhinhos internéticos nos quais hipnotizar quietinhas as fuças durante horas a fio e eram convidadas a correr as tranças ao ar livre e esfolar os joelhos escorregando na brita) e eu era uma delas. Gritávamos e corríamos até que algum adulto teve a ideia de se aproximar de nosso bando e propor uma brincadeira diferente. Ele prometia recompensar com uma nota de um cruzeiro (uau!) a primeira criança que encontrasse no potreiro lá fora um trevo de quatro folhas.

Sumimos do salão (que era o propósito do esperto adulto) e fomos nos entranhar nas macegas lá fora, em busca do raro troféu, quase impossível de achar, já que trevos, como já induz o nome da plantinha, são configurados por três folhas e uma eventual quarta depende de mutação genética. Mas de repente, um garoto disparou para  dentro do salão, gritando “tioo, tioo, achei!”. Fomos atrás, a tempo de ver o adulto repreender o impostor. Ele havia, espertamente, colhido um trevo comum de três folhas e, com as unhas, partido uma delas ao meio, na esperança de forjar uma quarta folha falsa. A pequena fraude, inocente e infantil, não colou. Por algum motivo, o episódio me marcou e lembro dele todos os dias ao assistir aos noticiários. Nosso país, em todas as esferas (pública, privada, social e doméstica), está tomado por garotos portadores de falsos trevos de quatro folhas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de abril de 2016)