sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Sobre teus lençóis

Mostra-me tua cama e dir-te-ei quem és. Como? Não, madama, que é isso? Longe de mim pensar coisas dessas. Ainda mais da senhora! Está a precipitar-se, até parece que não me conhece! Hein? Justamente porque me conhece bem é que... Mas, madama! Que horror! Deixemos disso e comecemos de novo, sem interrupções e sem observações antes da hora. Qual é a hora? Ao final do texto, madama, ao final do texto. Restart.
Mostra-me, então, tua cama, como eu dizia, e dir-te-ei quem és. Sim, isso mesmo. Refiro-me à cama em que dormes e da qual ergues teu ser completo, corpo e alma, todas as manhãs, para tomar posição e enfrentar a batalha da vida, da tua própria vida, dia após dia, na tecelagem da biografia que te coube erigir e pela qual respondes, dos mínimos atos aos mais sublimes. E entre os tais mínimos, és responsável pelo estado em que deixas toda a manhã o leito que te abrigou ao longo das horas noturnas, embalando teu repouso, acalentando teus sonhos, absorvendo teus pesadelos, abafando teus roncos (sim, eu sei madama, a senhora, não, a senhora, não), escutando tuas reflexões, amparando teus desesperos, dando-te o aconchego necessário para que recuperes tuas energias e preenchas de novo os cântaros de coragem, ânimo e força de que tanto necessitas para dela erguer-te e seres tu mais uma vez. É, sim, dela que falo, e de como a tratas.
Porque há quem diga, e daí o dito que disse eu no iniciar dos dois anteriores parágrafos, né, madama, caso não houvesse interrupções, pois há quem diga (sim, eu vi, agora eu mesmo interrompi a mim mesmo, desculpa), há quem diga, arre, agora me perdi. Acontece, até com mundanos cronistas. Ah, lembrei. Há quem diga, pois, que é possível avaliar o caráter de alguém se julgarmos a forma como esse alguém deixa sua cama ao dela levantar, todas as manhãs. Sim, porque arrumar o próprio leito pode se configurar em um ritual simbólico de demonstração de carinho próprio, denotando que uma cama arrumadinha, o lençol estendido, o travesseiro afofado em seu cantinho, são evidências da organização e da determinação que existem latentes dentro de você para superar os desafios que se enfileiram à sua espera a partir da porta do quarto. Já uma cama esculhambada...

Que é, madama? A senhora tem quem arrume para a senhora? Ah, bem, sim, tem disso, mas tudo bem, ok, a questão é que estará arrumada assim que dela elevares teu corpinho. Eu só estava falando de símbolos. Nem todos servem para todos. No fim, enfronhei-me onde não devia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de fevereiro de 2016)

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