terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O fujão arrependido

A noite havia se debruçado sobre a vizinhança não fazia muito. O crepúsculo já se despedira, o entardecer recolhera para dentro das casas as famílias que agora jantavam assistindo juntas ao Jornal Nacional. Naqueles idos dos anos 1980, o famoso noticiário televisivo ia ao ar mais cedo, antecipando a novela das oito que, de fato, começava às oito. Lembro que era calor. As janelas e portas da casa na Rua dos Viajantes, lá na minha Ijuí natal, escancaravam-se no convite insistente à brisa que teimava em não cruzar por aquelas bandas. Ouviam-se grilos e cigarras lá fora. Nos quartos escuros zumbiam mosquitos. Nada refrescava.
Eu, adolescente, após o jantar, já me recolhera a meu quarto a fim de fazer a lição de casa ou (mais provavelmente) ler um livro ou datilografar uma carta a algum correspondente entre os muitos que mantinha Brasil afora. Era noite e estava quente. De repente, movimentação na sala de estar. Fui ver o que havia e deparei com a cena inesperada: minha mãe sentada no sofá acalentando, no colo, o garotinho de cinco anos de idade, filho da vizinha do outro lado da esquina. Ele chorava. Havia desespero em seu choro. Fugira de casa. Por algum motivo, fora repreendido pelos pais e, sentindo-se injustiçado, decidira tomar a corajosa decisão de abandonar o lar, em represália. Mesmo assim, fugiu para não muito longe e encontrou porto seguro nos braços de minha mãe, que lhe acolheu o choro e a mágoa. Após conseguir acalmar o pequeno fujão, minha mãe tratou de avisar por telefone aos vizinhos que o garoto se encontrava ali em casa, seguro, e em breve retornaria.

Foi o que se deu, pouco depois. A birra passou e ele retornou, resignado, lágrimas engolidas, à própria casa atravessando a rua, sob os olhares zelosos de minha mãe. Chamava-se Lucas. Deve ser (claro que é) um homem crescido, hoje, o Lucas, a quem não vi mais desde que fui-me de Ijuí a enfrentar o mundo. Um enfrentamento que nos exige coragem todos os dias de nossas vidas, desde muito cedo, como no episódio da fuga de Lucas, que, naquela noite, protagonizou uma lição de proatividade com risco calculado. Fugiu, sim, deu seu recado externo e interno, mas logo depois entendeu a importância de recuar e atravessar de volta a rua, aos braços do aconchego de seu lar. Saber agir, saber recuar... Lições de casa não se restringem às folhas dos livros escolares. O pulsar da vida preenche páginas e páginas delas a quem as souber decifrar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de fevereiro de 2016)

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