quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A primeira não se esquece

A primeira Festa da Uva de nossas vidas a gente nunca esquece. Bom, mas eu esqueci. Fazer o quê? Preciso confessar com honestidade o delito memorioso que cometi, afinal, um cronista mundano como eu sobrevive da credibilidade que angaria junto à sua massa leitora (carbonara ou bolonhesa, prezado leitor, endeusada leitora?). Não posso enganá-los. Urge, pois, que eu confesse, às vésperas da abertura de nova edição da efeméride: a minha primeira Festa da Uva esvai-se de minhas memórias como o soprar da brisa que esvoaça as folhas de um parreiral. Não lembro patavinas.
Estará (elucubram os preocupados leitores) o mundano cronista apresentando indícios do instalar galopante de degenerescência cerebral que conduz ao alheamento na floresta da lucidez que até então o caracterizava? Não, nada disso. Trata-se, apenas, da dificuldade compreensível de resgatar do fundo do baú da memória um acontecimento encalhado em alguma rocha que permaneceu soçobrada nos longínquos tempos da infância, época da vida tão repleta de novos estímulos que acabamos mantendo acesa somente ínfima parcela deles (uma árvore de Natal, conchinhas de mar catadas na praia, a voz de um bisavô tirando balinhas do bolso). A Festa da Uva que visitei na década de 1970 (provavelmente a 13ª edição, de 1975) submergiu nesse poço de não-memórias.
Viemos de Ijuí a Caxias do Sul em um ônibus especialmente fretado pelo colégio em que eu estudava, provavelmente na terceira série do primeiro grau, muitos alunos e alguns professores. Não lembro da vinda. Não lembro da volta. Não lembro da estada. Com esforço, um flash de poucos segundos permite um vislumbre dos gramados em morrinhos nos quais fizemos um piquenique (de comida a gente lembra com maior generosidade). Mas é só. Não lembro dos pavilhões. Não lembro da rainha Roxane Torelly. Não lembro das uvas. Nem sei se essa viagem de fato aconteceu ou se é uma criação forçada das crônicas de minha vida, uma vez que, conforme o dramaturgo inglês Harold Pinter (1930 – 2008), “o passado é aquilo que você lembra, aquilo que você imagina que lembra, que você se convence de que lembra ou finge lembrar”.

Repouso, então, minhas recordações na edição de 1994 (a 20ª), a primeira que rolou desde que passei a residir em Caxias do Sul (a partir de 1992), soberaneada pela beleza de Cristina Briani. Essa sopra ventos recordatórios seguros pelos recantos de minha memória. Ao menos, por enquanto...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de fevereiro de 2016)

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