sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Graça nenhuma

Seu erro foi ter rido. Quando viu, tinha rido. Não planejou aquele riso – quem é que planeja risos? –, sequer fazia parte da turma, estava sentado sozinho em outra mesa, não conhecia ninguém, vinha de fora, chegara no meio da tarde e entrara direto no hotel, cansado da longa viagem de ônibus iniciada ainda pela manhã. Não tinha nada com aquilo. Apenas estava ali e rira. Um riso que atrairia azar, o pior dos azares, mas quem iria imaginar isso na hora do riso?
Ainda mais quando o riso sai assim, sem aviso, sem avisar que vai vir rindo e atinge direto a cara e a honra do desconhecido que cai no chão por ter a cadeira puxada pelo companheiro de mesa por pura sacanagem depois de entornada a meia dúzia de cervejas que balançam vazias sobre a mesa chacoalhada com o tombo do qual todos na mesa de amigos riem, riso ao qual se soma e se sobressai o dele, involuntário, ali no outro canto na mesa do bar de quinta categoria escolhido para o jantar e a cervejinha pela única razão de ficar a meia quadra do hotel e facilitar ida e volta. Quem mandou rir?
Riu. Riu como reflexo incontrolável derivado do testemunho involuntário e imprevisto da queda do bêbado. Riu mas não era amigo. Riu mas não era parceiro. Não era da turma. Não tinha o direito de rir. Seu riso não foi o riso cúmplice dos companheiros de cervejada. Seu riso foi alienígena, estrangeiro, malvindo. Seu riso foi o único que soou mal aos ouvidos do quedante, apesar de, na essência, ter sido o único riso inocente risado no bar solitário da cidade estranha no avanço da noite. Seu riso invocou o peso do silêncio que baixou na mesa das seis garrafas vazias, a mesa que agora se fartava de ódio e de desejo de vingança.

A primeira facada veio pelas costas, assim que pagou a conta e saiu porta afora, rumo ao hotel do meio da quadra. Ninguém na noite escutou os golpes, ninguém na noite escutou os gemidos. Se alguém ao longe ouviu alguma coisa, foram risos. Risos de morte. Conforme ilustra este miniconto, a punhalada fatal pelas costas, real ou metafórica, pode vir de onde e de quem menos se imagina, mesmo em situações corriqueiras do dia-a-dia. Ao rir sozinho em um bar. Ao buzinar irado devido a uma fechada no trânsito. Ao responder a uma agressão gratuita feita em rede social. Ao simplesmente viver sua vida e ser quem você é. O personagem fictício deste texto poderia morrer de várias outras maneiras no mundo atual real, marcado pela intolerância e pela violência. É preciso ter muito cuidado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de janeiro de 2016)

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