sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Bem longe de Paris

A recorrência é o ingrediente responsável pela degradação do fascínio. Sim, porque tudo aquilo que vira recorrente, ou seja, que se transforma em banal devido à repetição, acaba lançando sobre os sentidos o véu da rotina, deixando esmaecer a excitação natural que antes essa mesma fonte de prazeres exercia. O conhecido fica dominado, o repetitivo se transforma em previsível e o previsível não encanta. A não ser que saibamos renovar dentro de nós mesmos nossa própria capacidade de espanto e de encantamento com aquilo que já passou a fazer parte de nossa rotina. Mas aí é com a gente mesmo, depende de nós. E a experiência nos mostra que nem sempre temos disposição para fazer acontecer aquilo que depende de nós, somente de nós.
É por isso que agradeço todos os dias pelo fato de eu não ter nascido e não morar em Paris, por exemplo. Porque quem nasce e mora em Paris jamais poderá usufruir da sensação arrebatadora que é viajar pela primeira vez na vida a Paris e caminhar por aquelas avenidas repletas de História, detectar ao vivo o charme que até então só conhecia por meio de livros e filmes, deslumbrar-se com a majestade das construções, sentar a um café e pedir uma taça de vinho nacional, essas coisas. Ao nativo de Paris é negada a graça de ser turista em Paris. Ah, que bom ter nascido bem longe de Paris! E que dizer da maldição de Bob Dylan? Bob Dylan encerra em si uma contradição insolúvel: ele é, ao mesmo tempo, a única pessoa do mundo que compareceu a todos os shows de Bob Dylan, mas também é a única pessoa do mundo que não pode ir assistir a um show de Bob Dylan. Ah, que bom não ser Bob Dylan!

Que bom também não ser Ítalo Calvino, nem Machado de Assis e nem Juan Rulfo, pois só assim posso me deleitar com a leitura de livros escritos por eles, desfrutando na plenitude o sabor da novidade expressa pela arte dos gênios. E que bom, mas que bom mesmo, não morar pertinho de nenhuma padaria ou confeitaria. Porque eu detestaria ter meu sentido do olfato anestesiado para o prazer de detectar, de repente, o aroma irresistível de um pão quentinho recém saindo do forno, que é um dos melhores cheiros que podem existir no mundo. Não sei se isso acontece com os vizinhos das padarias, mas aposto que ocorre com os padeiros. Ou não, caso eles saibam exercitar o poder de redespertar e renovar constantemente o encanto por aquilo que amam. Eis aí um grande segredo para muitas coisas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de janeiro de 2016)

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