sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Você faz o quê?

Assim como em relação às pessoas, existem características específicas que regem o perfil de uma cidade, uma comunidade. Tanto é assim que astrólogos são capazes de tecer o mapa astral de um município utilizando sua data de fundação como base, como se fosse a data de nascimento. Alguns ramos da psicologia já procuram compreender esses aspectos que regem o perfil macro de uma comunidade para, a partir disso, alicerçar sua compreensão de como a psiquê de seus pacientes é influenciada e determinada pelo meio. Tem lógica.
Aqui em Caxias do Sul, por exemplo, o epíteto “terra do trabalho” é muito significativo, indo além e bem mais fundo do que somente um apelido simpático a uma comunidade que realmente alicerçou seu crescimento na base da dedicação, do esforço e da labuta árdua. Trata-se de uma verdade que se manifesta, se faz viva e direciona boa parte das visões de mundo de parte ainda maior de seus habitantes. A ponto de, às vezes, proporcionar o surgimento de visões um pouco deturpadas da realidade. Aqui, apenas “ser” não basta. Também não basta “ter”. É preciso, para ser reconhecido como ser, “fazer”. Quem não faz, nada é. Senão, vejamos o exemplo, que vem no parágrafo a seguir.
Final de semana desses, estava eu anfitrionando visita de parente quando resolvi apresentar a nova escultura que adorna um dos bancos da Praça Dante Alighieri, a estátua de Beatriz, musa inspiradora do poeta italiano que nomeia o logradouro, esculpida pela artista plástica Dilva Conte e recentemente inaugurada. Estávamos ali ao redor da escultura fazendo fotos quando fui abordado por um cidadão, intrigado com nossa movimentação. Simpático e expansivo, logo se pôs a me questionar se eu sabia a razão pela qual haviam feito uma estátua daquela moça. Respondi que sim, eu sabia, que se tratava de Beatriz, a musa de Dante. “Sim, mas o que ela fez para merecer estátua na praça?”, quis saber meu interlocutor. “Ora, ela inspirou a obra maior do poeta maior da Itália”, insisti. “Sim, isso fez ele, que tem ali o merecido busto, mas ela, ela mesma, fez o quê?”, insistiu ele mais ainda. Bom, aí desisti.

Não adiantava insistir na tentativa de criar ponto de convergência entre duas visões de mundo tão distantes. O que Beatriz fez para merecer estátua? Ora, ela existiu, simplesmente, e inspirou uma das mais belas expressões artísticas de história. Isso, para mim, basta.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de dezembro de 2015)

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