quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Um avião, um barco ou um poema

Uma folha em branco A4 repousa a meu lado sobre a escrivaninha e, dali, me observa. De onde veio? Como foi parar ali? Eu deveria saber, afinal, quem administra os objetos dentro de meu escritório sou eu mesmo. Exceto, claro, nos dias em que vem a faxineira. Ontem veio a faxineira. Deve ser por isso. De alguma forma, essa folha desgarrou do pacote de folhas A4 que mantenho detidas no balcãozinho da impressora e a faxineira tratou de posicioná-la ali, bem ao alcance de minha vista, e ela agora me fita (a folha, não a faxineira, pois que veio ontem, como já disse). Que quer de mim?
Houve tempos em que uma folha em branco ao alcance da mão soava como um apelo irresistível para que nela eu moldasse um poema. Ou uma tentativa de poema, pois que não sou poeta, nunca fui. Mas houve vezes, confesso, em que tentei sê-lo e não foram poucas as folhas em branco que manchei e estraguei com a tinta de canetas manuseadas por essas minhas mãos inábeis para a poesia. Isso em um tempo em que folhas em branco eram apenas isso: folhas em branco, e ninguém as chamava pelo registro de identidade que hoje as classifica em A4, A3 e assemelhados. Hoje em dia, caso poeta tivesse conseguido ser, ameaçaria com meus malversados versos as telas em branco do computador, e deixaria em paz as folhas em branco. Sorte delas.
Mas poderia, agora lembrei, dar outro destino a esta folha em branco desgarrada e provocativa. Poderia transformá-la em um barquinho de papel, ou, com uma ou outra dobra diferente, em um chapéu, pois que chapéus e barcos de papel são objetos assemelhados quando dominamos a técnica das dobras de folhas. Eu dominava essa técnica na adolescência, com excelência maior do que a da produção de poemas. Sabia, também, criar aviões de papel a partir das dobras certas. Sabia (pasmem) fazer dois tipos diferentes de aviões: um mais quadrado e lento e outro pontudo, rápido como um foguete. Vejamos se ainda o sei.

Não, não deu. Perdi a manha das dobras. Não consegui fazer nascer da folha A4 nem um avião, nem um barco e tampouco um chapéu. Desdobro-a e recoloco-a junto ao maço das demais folhas, sob o balcãozinho da impressora. Haverá de servir de base para a impressão de algum boleto de pagamento. Pelo menos, agora, uma folha em branco pode descansar tranquila ao meu lado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de dezembro de 2015)

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