segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Verdade vital

A revelação pode vir a ser dura para algumas pessoas, em especial aquelas teimosamente centradas em si mesmas, mas a verdade precisa ser dita e lembrada com frequência: o mundo não surgiu a partir do nosso nascimento. Você e eu não somos as pessoas mais incríveis e fundamentais de todo o universo, não, lamento. O mundo, é preciso que se diga, existe há bem mais tempo do que qualquer um de nós, e não foi criado para servir aos seus desejos e propósitos, nem aos meus. Pois é, lamento de novo, mas é isso aí. Já estamos em idade de saber das coisas e, convenhamos, depois daquele choque relativo à questão do Papai Noel, nada mais pode nos amargurar tanto, não é mesmo? Criamos casca grossa.
E essa grossa casca se faz necessária ao longo de toda a nossa existência, sempre tão curta e efêmera, para enfrentarmos com dignidade e maturidade as situações que a vida real nos apresenta. Uma delas, e das mais importantes, é a compreensão de que não surgimos do nada, vindos ao mundo como se fôssemos um marco zero para a História da humanidade. Não, nada disso. Somos, isso sim, cada um de nós, frutos diretos de um mundo que já existia antes de nossa chegada chorosa, desdentados e carecas, abrindo espaço e dando início à nossa trajetória individual. Cabe a nós desenvolver a capacidade de aprender com os fatos do passado e com as experiências dos que viram antes de nós para enfrentar esse mesmo desafio de posicionar-se humanamente frente à vida e dar a ela (à vida de cada um) um sentido que nos dignifique perante nossos próprios espelhos.
Muitos já fizeram isso antes de nós, e é exatamente por isso que houve espaço para que surgíssemos. É aos que vieram antes que devemos agradecer por terem se esforçado em construir, tijolo por tijolo, uma civilização para habitarmos e por nos deixarem um legado de erros e acertos que nos vão servir de exemplo e amparo ao longo de cada um de nossos próprios dias. Daí a necessidade de homenagearmos a memória dos que nos antecederam e que já terminaram suas trajetórias no tablado da existência, desempenhando os papéis que lhes cabiam na peça da vida.

Mas não existem atores principais. Somos todos figurantes nessa complexa peça escrita em conjunto e em tempo real por cada um de nós, e o papel que nos cabe, esse, sim, só pode ser desempenhado por nós mesmos, e por ninguém mais. Se queremos aplausos no final, é bom aprendermos com aqueles cujas memórias hoje aplaudimos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de novembro de 2015)

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