quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O cachimbo de Shakespeare

Calma, vamos devagar, é preciso cautela frente às informações que circulam com a velocidade de abelhas famintas (abelhas sentem fome?) pelos domínios livres e desprovidos de quebra-molas da internet. Basta uma notícia bombástica ser veiculada, embasada em pretensos institutos de pesquisa situados remotamente, para que os pseudofatos ganhem contornos de verdade e passem a ser repetidos como se fatos fossem de fato. Nem sempre é assim.
Deparei-me esta semana com a “notícia” de que pesquisadores da Universidade de Witwatersrand, de Johannesburg, na África do Sul, andaram fazendo escavações nos quintais da casa de William Shakespeare (1564 - 1616), em Stratford-Upon-Avon (cidade onde o escritor nasceu), no interior da Inglaterra, e ali encontraram resquícios de antigos cachimbos contendo maconha. Foi o que bastou para que a imprensa mundial tascasse e passasse a repetir, em todas as partes: “Pesquisadores acreditam que Shakespeare fumou maconha para escrever obras”. Fácil, assim, ser pesquisador, não é mesmo? E fácil, assim, ser jornalista, pois não? Difícil é convencer gente como eu com essas fragilidades. Devagar na maionese.
Eu estive em Stratford-Upon-Avon há apenas três meses, conhecendo a terra que deu ao mundo o maior gênio da literatura. Ali, visitei a casa onde Shakespeare nasceu e viveu boa parte da infância e da adolescência, até se casar com Anne Hathaway (mesmo nome da atual atriz). Essa casa hoje é um museu aberto à visitação e está decorada como provavelmente o era na época em que o pequeno William ali vivia com seus pais. Não foi ali, portanto, que se desenvolveu escavação alguma. E se foi (o que não ocorreu), os cachimbos pertenciam ao pai de Shakespeare, e não a ele.
Muitos anos depois, já adulto e famoso em Londres devido a suas peças, Shakespeare, rico, mandou construir uma suntuosa casa em Stratford-Upon-Avon, onde viveu com a esposa e os filhos. Essa casa, anos mais tarde, depois da morte do dramaturgo, foi vendida, revendida e vendida de novo, até ser demolida e não restar-lhe sequer um traço. O que existe hoje é a propriedade e um buraco no local onde houve a casa. Talvez as tais escavações tenham ocorrido ali. Ali, onde muita gente viveu depois de Shakespeare e talvez um ou outro tenha fumado cachimbos com pretensa maconha. Não necessariamente Shakespeare.

Então, vamos com calma. Faz bem para nossa própria biografia evitar sermos teclas fáceis de reprodução automática. Do que quer que seja.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de agosto de 2015)

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