quinta-feira, 25 de junho de 2015

É preciso coragem

É preciso ter coragem. É preciso ter sido moldado em boa cepa, evocar as próprias raízes, recordar dos antepassados, seus feitos, sua glórias, e inspirar-se nelas. É preciso ter determinação, garra, vontade de vencer. É preciso pensar no sabor da vitória quando alcançada, na satisfação de um dever cumprido, na honra de transpor a muralha da adversidade para romper com orgulho a faixa da chegada. É preciso reunir todas as energias de que somos capazes de aglomerar em nosso íntimo mais profundo. É preciso fazer um gesto rápido para jogar a pilha de cobertores para o alto, saltar da cama, calçar as pantufas e correr para o banho antes que a dimensão do imenso frio se apodere de todo o nosso ser e nos faça voltar correndo para o leito quentinho e decididamente não sair mais de lá até que chegue de novo a hora de vestir os maiôs e irmos para a praia no bom do verão e seja lá o que Deus quiser.
Mas é preciso ter força. O veraneio ainda está longe. Aliás, nesses dias de zero grau ao alvorecer, estão mais longe do que nunca aquelas coisas de sunga à beira-mar tomando água-de-coco e torrando os costados enquanto se decide por um mergulho no mar ou por uma caipirinha geladinha embaixo do guarda-sol. Miragens, miragens, tudo isso não passa de miragens, nada disso existe nem nunca existiu, são frutos de nossa fértil imaginação, congelada em uma realidade apenas tecida em nossos mais profundos sonhos e aspirações. Congeladíssima ali, por sinal. Muito, muito, mas muuuito congelada ali.
A verdade é que não existe verão, não existe praia, não existe areia escaldante. O que existe é esse pote de manteiga que deixei fora da geladeira ontem à noite e agora no café da manhã se apresenta tão dura quanto se tivesse passado a madrugada dentro do freezer. Nem ouso ir conferir a temperatura das duas latinhas de cerveja que comprei ontem no mercado e deixei guardadas no armário da despensa. Vai que estejam congeladas e eu tenha de jogá-las fora.

Observo o forno de micro-ondas com uma sensação estranha percorrendo meus pensamentos e me parece que uma ideia estúpida se vai ali formando. Parece que estou dimensionando com o olhar a largura e profundidade do interior do aparelho, para ver se dentro cabem meus pés. Devo parar enquanto é tempo. Conduzo-me, determinado, rumo ao chuveiro. Coragem.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de junho de 2015)

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