sábado, 20 de junho de 2015

Cuidado com a dama

“É preciso cuidar da dama”. Com essa frase, repetida sempre que nos preparávamos para a nossa semanal partida de xadrez, nas noites de terça-feira, lá em Ijuí, meu avô paterno ressaltava uma das mais importantes dicas estratégicas do milenar jogo que encanta gerações. Muito mais do que o rei, limitado em seus movimentos sobre os quadrados do tabuleiro, tão grande e portentoso quanto frágil, restrito a atos de fuga e exigindo proteção constante, a rainha é a peça mais poderosa entre todas e, portanto, a prioritária a ser protegida. Assim, o lógico era “cuidar da dama”.
Jogávamos no gabinete que meu avô tinha no segundo andar de sua ampla casa de arquitetura típica alemã, adornada na parte externa com lambrequins, o enxaimel ainda presente em determinadas estruturas, os telhados em formato de “V” proporcionando uma viagem no tempo a antigas aldeias europeias. O ambiente ficava a meia-luz, um enorme abajur posicionado a um dos lados do tabuleiro, focando a essência da luz sobre as peças que iam sendo movidas de quando em vez, obedecendo ao ritmo compassado do raciocínio de cada contendor. E tanto um quanto o outro, cuidando suas respectivas damas.
Dependendo do seu humor na noite – que invariavelmente variava entre o bem humorado e o muito bem humorado –, meu avô exercitava variações sobre o próprio tema, invertendo o foco do mantra e aconselhando a ficar atento e prestar atenção aos movimentos do adversário (no caso, ele próprio). “É preciso ter cuidado com a dama”, advertia, ensinando assim que, além de ser necessário jogar de forma a evitar que minha rainha ficasse fragilizada, era também imperioso que eu me prevenisse contra os ataques que a rainha inimiga poderia estar tramando com o movimentar de sua saia pelo lado de lá das fileiras adversárias. Ahá!

Era, então, preciso cuidar da dama (da minha) e tomar cuidado com a dama (a dele). Claro que a regra não valia só em relação à rainha: também era preciso cuidar dos meus cavalos e atentar aos cavalos dele; cuidar dos meus bispos e atentar aos dele; deitar um olho nas minhas torres e o outro olho nas dele. Mas as damas, meu caro, ah, as damas valiam ouro. E hoje dou de presente a metáfora, deixando-a livre para que o leitor a interprete de acordo com suas próprias estratégias.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de junho de 2015)

Nenhum comentário: