quinta-feira, 26 de março de 2015

Um coração de pedra

A culpa toda é do coração duro e frio de Estela, que se recusa a amar e desdenha a quem por ela professe amores. Estela, tão bela, tão encantadora e, ao mesmo tempo, tão terrível, com sua indiferença atroz, seu olhar de geleira que não se comove um pingo sequer frente às mais devotadas e fervorosas intenções de Pip, o apaixonado Pip, o desventurado Pip, que tanto a ama.
Ah, Estela, você não merece a vastidão desse amor, que tão poeticamente se traduz na súbita declaração desesperada de Pip: “Esquecer você? Você é parte da minha existência, parte de mim mesmo. Você estava em cada verso que eu li, desde que aqui vim pela primeira vez, aquele garoto rude e comum que você, já naquela época, magoava tanto. Você, desde aquela época, esteve em todas as minhas perspectivas... no rio, nas velas dos navios, no brejo, nas nuvens, na luz, na escuridão, no vento, nos bosques, no mar, nas ruas. Você foi a encarnação de todas as fantasias bonitas do meu pensamento. As pedras que formam os edifícios mais fortes de Londres não são mais reais, ou mais impossíveis de serem deslocadas pelas suas mãos, do que sua presença e influência em mim, em todo lugar, para sempre. Estela, até a hora em que eu morrer, você não tem escolha. Você vai ser parte do meu caráter, parte do pouco que há de bom em mim, e do que há de mal. Mas, ao nos separarmos, eu sempre irei associá-la com o bem, e é assim, com toda a lealdade, que sempre pensarei em você, pois você foi, para mim, mais um alento do que um desalento, e agora deixe que eu sinta toda a minha dor. Que Deus a abençoe! Que Deus a perdoe!”.
Barbaridade, Estela! E nem assim, hein, Estela? Puxa vida! Fechei o livro depois desse arrebatador golpe de alta literatura proveniente da pena de Charles Dickens (1812 – 1870) nas páginas de “Grandes Esperanças” e recostei a cabeça no espaldar do sofá da sala, já altas horas da noite, para refletir sobre as inconstâncias do amor e as motivações tão humanas dos personagens. Meus olhos passearam pelo teto da sala e repousaram sobre o lustre... Minado de pontinhos pretos! Puxa, o lustre da sala, repleto de insetos mortos em seu interior! Melhor seria nem ter visto. Amanhã terei de tirá-lo e limpá-lo. Arre! Tudo culpa desse coração de pedra de Estela!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de março de 2015)

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