quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

De cuia na mão

Com um movimento firme das mãos, o homem transmite pela rédea a ordem que faz o cavalo parar o trote no alto da campina. O encontro com o sol nascente parece cronometrado. Os raios de luz e calor vão acordando a relva ainda gélida do orvalho da madrugada, descortinando aos olhos do homem, de palheiro aceso sob o bigode, o cenário que ele está habituado a presenciar, mas de cuja beleza rústica jamais se cansa.
Os joões-de-barro reiniciam o moldar de casas sólidas no alto das paineiras; o gado reunido retoma o manso pastar; o cachorro ovelheiro aguarda ao lado a ordem para campear o terneiro que desgarrou mato adentro. Mais um dia nasce no campo dos cimos da Serra, igual ao que está a surgir no dos pampas, no da região missioneira, no das fronteiras e interiores do vasto Rio Grande, a unir gaúchos em seu modo peculiar de ser e de sentir o pedaço de mundo que lhes foi destinado. Com um movimento dos calcanhares, as esporas transmitem ao cavalo a ordem de retornar para casa, onde o homem vai sorver os primeiros goles do chimarrão cuja água já chia na chaleira de ferro sobre o fogão a lenha, cevado pela esposa que também madruga e lhe está à espera.
Na mesma hora, na cidade grande, arrancado da cama pelo rádio que lhe informa a temperatura e as notícias, o homem escova os dentes e corre para o trabalho enfrentando o entrevero do trânsito. Pelo caminho, os primeiros raios do sol da manhã vão lançando luz e calor sobre o cimento dos edifícios que, ao longo dos anos, sopram para o limbo a madeira das casas antigas que evocavam recuerdos.
Ele não vê a hora de chegar ao escritório ou à repartição e sorver os primeiros goles do chimarrão que algum colega madrugador já cevou para aquecer o início do dia. Sua esposa, do outro lado da cidade, recebe também a primeira cuia preparada pela colega de trabalho e sorve o mate pensando no marido e na felicidade de esperarem pela chegada do final de semana, quando dançarão ao ritmo da chamarrita, do bugio, do chamamé, no CTG da sua cidade.
Seja com o pé descalço pisando a relva da campina ou com o sapato apertado aguardando o sinal no cruzamento, gaúchos são gaúchos, e o ronco de uma cuia de chimarrão os torna a todos universais. Agora com licença, que vou preparar um mate...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de fevereiro de 2015)

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