segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Lábios de mel

Aconteceu alguns anos atrás aqui em Caxias do Sul, em um bate-papo sobre literatura com um escritor convidado vindo de fora. O auditório estava lotado, o público atento, a palestra dinâmica e atraente. Terminada a explanação inicial, o autor, experiente nessas coisas de palestras com leitores, abriu para as perguntas. Foi aí que aconteceu.
Lá de um canto, ouviu-se então a voz de uma senhora que havia levantado a mão e já ia fazendo a pergunta quando foi gentilmente interrompida pelo palestrante, que, antes de mais nada, desejava saber o seu nome. Deu-se mais ou menos assim o diálogo, que reproduzo a partir das falhas de minha memória:
“Como a senhora se chama?”, quis saber o escritor. “Ah, meu nome é Iracema”, respondeu a senhora. “Iracema! Prazer, dona Iracema. Que belo nome. É nome de uma famosa personagem de romance de José de Alencar, sabia? Iracema, dos lábios de mel. A senhora tem lábios de mel, dona Iracema?”, perguntou o escritor, brincando com o nome da leitora, evocando um dos autores mais importantes da literatura nacional e dando um show de gentileza. “Eu não sei”, foi a resposta da leitora.
Ela não sabia. Não sabia responder se ela, a exemplo da personagem literária, possuía também lábios de mel. Ela não sabia. Ao responder de forma tão imediata à inesperada pergunta, a sinceridade lhe aflorou aos lábios que, se não eram de mel, eram, no mínimo, besuntados de ingênua e sincera honestidade. Porque ali, exposta na frente de toda uma plateia, dona Iracema, a leitora de carne e osso, não sucumbiu ao apelo às vezes irresistível da autopromoção, nem aos ditames do ego, que tantas vezes nos induzem a sairmos por aí vendendo um peixe que nem sempre condiz à envergadura real de nossas nadadeiras.

Dona Iracema não sabe se tem lábios de mel. Aquele doce e suave e sincero “não sei” inundou o anfiteatro e não sei eu aqui se a profundidade poética daquele dizer ressoou também em outros ouvidos além dos meus. A aparente incerteza da resposta foi decorrente da convicção de uma alma sincera. Que raridade! No mínimo, naquele momento houve, sim, mel nos lábios daquela Iracema real. O raro mel da modéstia sincera.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de novembro de 2014)

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