sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Temas em fila

“Quem inventa, aguenta”, dizia o ditado que usávamos em nossa infância, quando queríamos nos livrar de algum abacaxi e empurrá-lo às mãos de outro coleguinha, irmãozinho, priminho. Mas o dito também tem uso autoaplicativo, e serve como uma luva quando não temos a quem culpar por nossas escolhas e decisões, a não ser a nós mesmos. E é assim: inventou, tem de arcar com as consequências. Aguente.
Eu, por exemplo, que inventei de ser cronista, agora, eu que aguente. Inventei de ser cronista e, ainda por cima, de optar por tentar exercitar aquela espécie de texto focado nas pequenas irrelevâncias significativas do cotidiano, nas quais o insumo básico consiste em uma mescla de bom humor, sensibilidade, observação acurada, uso indiscriminado das metáforas, temas para o debate nas entrelinhas, a experiência pessoal servindo de base para a reflexão universal, essas coisas. Para isso, tenho de buscar inspiração e assunto em tudo o que me cerca, tirando leite de pedra quando a vaca ameaça ir para o brejo. Inventei, tenho de aguentar.
Ontem, por exemplo, tergiversei aqui (também uso palavras pouco usuais às vezes, para valorizar o meu passe) sobre a importância psíquica de pequenos objetos do cotidiano como uma xícara lascada, um blusão esgarçado e um velho par de chinelos. Mas, para quê! Bastou isso para que agora todos os pequenos objetos que se julgam significativos aqui de casa passassem a pensar que também devem ser vistos como tema para minhas crônicas. E há agora uma fila deles aqui em volta do meu computador, querendo ser citados.
Estão ali o molho de chaves da casa, a cadernetinha onde anoto ideias, o calendário de mesa em que vou riscando os dias, o bottom dos Beatles adquirido em Buenos Aires, o bonequinho de John Lennon que desgarrou dos outros três parceiros lá da sala, o relógio de bolso que era de meu avô, a pequena ampulheta com areia cor-de-rosa, a esfera transparente que remete ao livro borgeano “O Aleph”, o canivete suíço de trocentas utilidades, o tênis velho que está com ciúmes do chinelo de ontem, até mesmo a almofada para carimbo.

E agora, o que faço? Inventei, aguentarei. E dê-lhe ideia para crônica...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de setembro de 2014)

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