domingo, 28 de setembro de 2014

Feira de sinceridade

Saber receber uma crítica é uma questão de maturidade pessoal, dizem os psicólogos. Os românticos diriam que ter encaixe para absorver as críticas é, na verdade, uma arte. Já eu, que faço o estilo dedo-destroncado, digo que aguentar no osso do peito as pauladas sem rugir é coisa para quem tem estômago.
Sim, porque nem sempre é fácil ser alvo da sinceridade alheia. E, se existe uma categoria profissional que possui estômago de ferro e sabe exercer a arte de receber críticas com maturidade, é a dos feirantes. Circule por entre as tendinhas de uma das várias feiras de produtor que existem pela cidade sempre que desejar constatar in loco o exercício desbragado da sinceridade do consumidor sendo exposta diretamente aos fornecedores do produto. É batata!
Defronte ao tabuleiro repleto de produtos, estacionam as donas de casa que, exigentes, passam a exercitar ali seus direitos de consumidoras com uma destreza que deveria ser modelo para a atuação de todos nós, em todos os estabelecimentos e frente a todos os prestadores de serviços existentes. “Barbaridade, mas estão feios esses tomates, hein, vizinho”, exclama uma delas, frente ao sorriso amarelo-cenoura do produtor. “Foram as chuvas, vizinha, mas deixa eu escolher os melhores aqui para a senhora”, replica ele, amansando a freguesa com um sorriso e não perdendo a venda. “Ma zio, mas o preço da tua cebola está o mesmo que no mercadão”, reclama o senhor de boina. “Sim, mas olha a qualidade, vizinho, aqui tem qualidade”, sai o feirante em defesa de seu produto.

De fato, trata-se de uma arte. Na verdade, da arte do bom humor fraterno camuflado sob um falso véu de indignação, porque é na feira, junto aos simpáticos feirantes, que se pode extravasar as indignações verdadeiras que vão sendo recalcadas no dia a dia contra o serviço de telefonia, contra o serviço de televisão paga, contra o mau atendimento nos bancos e na saúde pública, contra as estradas que ninguém conserva. Enxovalhando o tomate do feirante, atiram-se tomates podres simbólicos naqueles que de fato nos oprimem. Como já dizia o poeta aquele, “tudo é símbolo e analogia”...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de setembro de 2014)

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