quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A xícara lascada

Aquele velho par de chinelos de lã esgarçado pelo tempo e pelos dedões do pé, cuja ponta já começa a ficar ralinha, prenúncio de furo a rebentar logo, logo. Aquele blusão de dez anos atrás, que já passeou pelos agitos da noite, cujo uso agora ficou restrito aos domínios da casa, ou melhor, do quarto de dormir, transformado no mais confortável e aconchegante pijama do planeta. Aquela xícara que veio nem sabemos de onde, mas que compõe a mesa do café da manhã todo o santo dia há anos, mesmo com a lasquinha na borda decorrente de uma lavada estabanada de louça, e na qual o sabor do café com leite fica inigualável. O que essas peças têm em comum?
Primeiro, que, se depender de nossa vontade, são objetos que jamais irão para o descarte. As campanhas sazonais de doações de roupas receberão, sim, aquela calça de dois anos atrás, o casaco em ótimo estado que sai do guarda-roupas por uma questão de espaço, o par de sapatos que ainda reluz como novo, sim. Esses a gente doa adiante sem sofrer a dor da separação.  Mas o chinelinho aquele de quase-furo, que envolve nosso pé por já ter se transformado em uma cápsula anatômica perfeita, totalmente personalizada (ou seria pé-sonalizada?), esse não sai de casa nem que a vaca tussa, e ainda assim, se tossir a vaca, tem aqui um xaropinho de ervas verdes que minha sogra faz que é milagroso e posso ceder uma colher ao bicho, caso queira limpar a garganta.
Segundo, são objetos de estimação que, de alguma forma (ajudem-me, psicólogas), produzem uma representação material, táctil e visual do conchego interno que buscamos nas pequenas coisas do cotidiano para simbolizar a segurança psíquica de que precisamos para enfrentar os desafios do dia a dia (acertei na percepção ou bati na trave?). O chinelo furado, o blusão esgarçado e a xícara lascada são bengalas psicológicas que nos permitem uma conexão com a sensação infantil de aconchego materno perdida com o processo de adultização a que somos submetidos pelo andar das horas.

Podemos deixar para trás o peito materno, os ursinhos de pelúcia e as espinhas. Mas aquela xícara lascada segue ali, firme, em mais um café da manhã.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de setembro de 2014)

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