quinta-feira, 19 de junho de 2014

Ritos à risca

Mais um amanhecer. Vamos aos rituais preparatórios para o enfrentar de uma nova jornada. O termo “ritual” parece soprar ventos de teimosia e chatice, mas, se formos analisar bem, não é sempre assim. Com o passar do tempo, vamos não só adotando e criando novos rituais como também reformatando os antigos.
Sair da cama, por exemplo. É uma coisa aos 20 anos de idade, e outra aos 40 (sim, sim, 40 e poucos... e tantos... tá... sim, quase 50, certo, certo... que tem isso a ver com a essência do texto?). Aos 20, a gente desperta, espreguiça o corpo, abre os olhos, levanta-se de um ímpeto para sentar-se no leito, gira-se o corpitcho (aos 20 ainda é um corpitcho), lança-se as pernas para fora e pimba... estamos eretos em um salto, ao lado do leito. Mas aos 40... 40 e poucos... sim, senhora, aos quase 50... precisamos empreender um ritmo mais pausado ao velho e bom ritual que há tanto tempo nos acompanha. Não podemos sair acordando e catapultando nossos corpos para fora da cama em um ímpeto, porque não temos mais a antiga agilidade juvenil para tanto. Se assim o fizermos, tontearemos, teremos vertigem, o sangue não acompanhará nos músculos o movimento que nosso cérebro desejava realizar.
 É preciso apascentar o ritual, adequá-lo ao ritmo certo. Da mesma forma se dá com todos os demais ritos que definem nossas existências cotidianas. Um amanhecer com tempo firme em Caxias do Sul, por exemplo, permite sair (calmamente) da cama e fazer uma caminhada de uma hora pelas ruas do bairro, obedecendo à recomendação médica de exorcizar o sedentarismo e botar alguma atividade nesse corpit... hann... nesse esqueleto aqui.

Tênis calçados, abrigo vestido (nos tempos do corpitcho, vestia-se “macacão” mesmo e era tudo muito natural) e vamos ao mundo, caminhar. Na terceira esquina, lá está ele, o cachorrinho não-sei-quem-e-nem-de-quem, que deu de me esperar ali sempre que o dia está bom, para me acompanhar ao longo de todo o trajeto dessas caminhadas. Virou meu amigo silencioso e fiel nesses meus raros momentos de atividade física pelo bairro. Não sei que idade tem e se também está a seguir prescrições veterinárias antissedentarismo canino. O fato é que me acompanha. Arranjou em mim um humano eventual de estimação, a fim de movimentar e abrilhantar os seus próprios ritos. Afinal, nunca sabemos até que ponto somos fundamentais, importantes e significativos para os rituais dos outros...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de junho de 2014)

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