sexta-feira, 13 de junho de 2014

Os nervos da Tia Edewiges

Tia Edewiges era uma anfitriã esmerada. Eu me lembro da Tia Edewiges mordida nos calcanhares nos dias em que meu tio telefonava do trabalho dizendo que à noite levaria o sócio e a esposa para jantarem em casa, para ela preparar alguma coisinha qualquer, sem maiores cerimônias, que o Palhares não era de cerimônias, ela sabia disso, mas a mulher do Palhares, essa sim, era metida a fina e não desempinava aquele nariz arrebitado nunca, e era importante dar uma aduladinha no Palhares, afinal, era sócio majoritário na firma e essa coisa de estreitar relações sempre é importante para colher no futuro e, quem sabe, depois de uns uisquezinhos, o Palhares não afrouxava a guarda e concordava em assinar aquele empréstimo...
Era o que bastava para deixar a Tia Edewiges em pânico. Para ficar “mordida nos calcanhares”, como ela própria dizia. E ficava mesmo, pois só o que se via pela casa, a partir daquele momento, eram os calcanhares da Tia Edewiges socando as tábuas do piso dos cômodos, de lá para cá, metralhando ordens para a coitada da Loris, a empregada, que tinha de deixar os trabalhos usuais do dia e correr atrás das tarefas que Tia Edewiges ia empilhando. “Descasque as batatas que vou fazer um purê, porque sei que a dona Lavínia, mulher do Palhares, gosta de coisa fina e purê de batatas igual ao meu quero ver se ela vai encontrar nesses restaurantes do estrangeiro por onde desfila”, gritava da sala a Tia Edewiges para a Loris, na cozinha.
Uma descascava as batatas e a outra ia organizando a louça e os talheres sobre a toalha branca rendada que só era içada do fundo da gaveta no Natal, no Ano Novo e nas vezes em que desejavam impressionar no jantar. Purê de batatas e estrogonofe era o que Tia Edewiges maquinava para o cardápio, numa época em que pratos assim representavam o suprassumo da finura.

O fato é que Tia Edewiges não conseguia relaxar um só segundo quando se via investida na condição de anfitriã. Detalhista e ansiada, desejava que tudo corresse às mil maravilhas, desde os cajuzinhos e amendoins servidos na entrada até o cafezinho ao final do ágape. No fundo, ela compartilhava essa sensação universal de que é muito melhor, mais leve e mais divertido ser convidado e hóspede do que ser anfitrião. Talvez seja por isso que estejamos, nós, brasileiros, meio tensos com essa coisa de Copa do Mundo aqui em nossa casa. Ao longo dessas semanas, somos 200 milhões de Tias Edewiges, mordidos nos calcanhares.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de junho de 2014)

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