segunda-feira, 23 de junho de 2014

As cores do Golias

Para as aulas de catecismo, quando eu era criança, tínhamos um livrinho ilustrado com cenas das principais histórias da Bíblia, histórias essas que estudaríamos com os catequistas e cujos ensinamentos nos deveriam servir de alguma coisa para nossas vidas. Isso era lá nos meados dos anos 1970, um mundo bem diferente desse que está aí hoje, por várias razões.
Uma delas era justamente as tais ilustrações do livrinho de catecismo, todas elas em preto e branco, concebidas para que as coloríssemos com os lápis-de-cor que assomavam em nossos elegantes e exibicionistas estojos. Eu tinha um com 24 cores, incluindo o branco (que usei para pintar as barbas de Noé) e o preto (útil para a barba de Barrabás na cruz). Ficávamos encantados com a possibilidade de colorirmos todas as gravuras daquele livrinho, e nos lançávamos em uma velada disputa para ver quem o fazia de forma mais bela.
Uma das cenas que mais me exigiram dedicação foi a do pequeno Davi com sua funda em punho, pronto para arremessar a pedra rumo à cabeça do cabeludo e gigantesco Golias, estaqueado ali, com cara de mau, ameaçador, espada em punho, aparentemente indestrutível. Sabíamos, devido às histórias contadas pelos catequistas, que Davi acertaria a pedrada na testa do gigante e o derrotaria devido ao uso da astúcia, da inteligência, em detrimento da mera força física. Pintávamos Davi com esmero e dedicação, pois ele era o herói da história, contra as cores sombrias com que vestíamos o malvado Golias.
Por vias indiretas, ou talvez obedecendo à intenção real da moral da história, passamos a aprender a torcer pelos mais fracos, a criarmos dentro de nós o sentimento de empatia pelos menos poderosos, de necessidade de cultivar a justiça e de protegermos quem parece não ter forças para fazer frente aos Golias da vida. E agora, nessa copa do Mundo do Brasil, em que seleções aparentemente frágeis andam a dar imenso trabalho aos times historicamente mais fortes e tradicionais, percebemos que a era dos Davis parece estar chegando para ficar. O salto alto dos Golias do futebol anda trincando no meio dos gramados e os sustos estão se acumulando.

Ou é a Era dos Davis que se estabelece, ou, quem sabe, o que as metáforas dos campos de futebol andam querendo mostrar é que o que chegou ao fim foi a Era dos Golias. Nesse mundo globalizado, a ingenuidade não tem mais lugar nem mesmo no futebol. Roncar grosso e cantar de galo são coisas do passado e não há lápis-de-cor capaz de camuflar as verdadeiras tintas do mundo atual. Humildade e esforço parecem ser as únicas fundas hoje capazes de fazer frente aos desafios gigantes que temos, seja na área que for. Mantenhamos nossos lápis sempre bem apontados, portanto...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de junho de 2014)

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