quinta-feira, 1 de maio de 2014

O dom e o drama

A crise dos 40, que acomete preferencialmente as pessoas que atingem quatro décadas de vida e se botam a pensar sobre o milagre da existência (de sua própria existência, claro está), atingiu Osvaldino na consciência (em outros, ela ataca áreas diversas como a pança proeminente, os pés-de-galinha ao redor dos olhos, a nuca com a tatuagem da Avril Lavigne feita na adolescência...). Osvaldino viu-se aportando na metade de sua trajetória existencial sem nunca ter desenvolvido nenhuma aptidão artística, ele que se formara em Contabilidade e passava os dias enfileirando números e dedilhando máquinas de calcular.
Estava da hora de direcionar a vela de seu barco pessoal rumo a passeios por mares mentais nunca antes explorados, e ia ser já. Osvaldino estudou as diversas formas de expressão artística existentes e achou meio tarde para ir aprender a tocar fagote ou a pintar aquarelas ou a encenar “Hamlet” na Casa da Cultura. Osvaldino queria algo que lhe proporcionasse resultados mais imediatos e veio-lhe a luz: “vou ser escritor”. Ora, pensou Osvaldino, escrever, todo mundo que está alfabetizado sabe, basta pegar uma caneta e um papel ou sentar à frente do computador e mandar bala, não tem mistério, todos escrevem, até seu vizinho já lançara um livro.
Depois de escutar uma palestra proferida por um cronista famoso na cidade, recomendando às pessoas que desejassem escrever que participassem de concursos literários, Osvaldino decidiu começar produzindo contos para submetê-los ao certame citadino. Tendo ido dormir com esses pensamentos na cabeça, Osvaldino foi acometido de madrugada por um surto criativo que o fez pular da cama para anotar aquelas inspirações que as musas generosamente lhe sopravam, na forma de uma série de aberturas para contos.
Um deles começava assim: “Era frio. Muito frio”. O outro: “Era mau. Muito mau”. Depois veio: “Era perverso. Muito perverso”. E Osvaldino foi anotando. Mais tarde, a inspiração para aberturas de contos evoluiu para “Era noite. Noitíssima!”; “Era tarde. Tardíssimo!”; “Era rico. Riquíssimo!”. Osvaldino, inspirado (inspiradíssimo), continuou evoluindo: “Era feio. E como!”; “Era odiado. Muito!”. Até chegar à sua obra-prima de abertura de futuro conto: “Chovia. E aos cântaros!”.

Agora, Osvaldino tem um problema. Não sabe como continuar nenhum de seus contos já abertos. Osvaldino se transformou em uma obra inacabada de projeto de futuro escritor. Estranho, uma vez que escrever é tão fácil...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de maio de 2014) 

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