sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Olha a melancia

Não tem dia em que o caminhãozinho não passe pelas ruas do bairro onde moro, alternando buzinadinhas de aviso com a voz que, pelo alto-falante instalado sobre o capô da cabine, anuncia, ao vivo, os predicados inigualáveis das melancias que carrega e oferta à vizinhança. “Olha a melancia... biiip biiip biiiip... ooooolha a melancia! Biiip... biiipp... Olha a melancia deliciosa e barata!”. E assim segue durante horas em sua interminável ação publicitária direta, cuja performance meus ouvidos vão detectando à medida em que o som se distancia ou se aproxima de onde moro, revelando que o trajeto praticado é serpenteante, um vai-e-volta contínuo por quadras e esquinas ao sabor da intuição do motorista.
As melancias visitam nosso bairro normalmente na parte da manhã. À tarde, as ruas são percorridas pela van dos picolés. “Olha o picolé geladinho! Três picolés de creme por um real ou cinco picolés de frutas por um real! Olha o picolé! Picolé bom e barato! Três de creme por um real ou cinco de frutas por um real”! Confesso que, nesses recentes dias de temperaturas de forno de micro-ondas que vivenciamos aqui na cidade, flagrei-me diversas vezes tentado a sair correndo prédio abaixo para capturar o “homem do picolé” e experimentar pelo menos a oferta dos três de creme por um real. Fui impedido pela desconfiança de que o elevador não me ofereceria a agilidade necessária para me colocar ao rés do chão em tempo hábil de ainda encontrar a van pelas imediações do prédio, e não estava em meus planos sair perdendo as chinelas pela rua me descabelando atrás do picolezeiro, respingando moedas pela calçada. Já passei dessa fase.

O interessante é detectar que, apesar de envelhecermos e mudarmos de fases, algumas coisas que remontam ao passado persistem vivas e ativas no mundo moderno, como esses vendedores que anunciam seus produtos em alto e bom som diretamente ao público. Na Ijuí de minha infância, havia os meninos-picolezeiros, com suas caixinhas de isopor e as gaitinhas de boca por meio da qual anunciavam o produto gelado que tanto cobiçávamos. Em Santa Maria, nos tempos dos estudos universitários, havia o velhinho que estacionava sua Variant no centro da cidade, abria o porta-malas transmudado em prateleira de livros e gritava, à nossa passagem: “oooooolha a boa leituraaa”! Em nome da nostalgia, talvez amanhã eu desça e capture uma melancia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de fevereiro de 2014)

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