terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O matricida estabanado

Tentei matar minha mãe. Não consegui, haja vista eu continuar solto e serelepe pelas ruas da cidade atrás de assuntos para crônicas que alguns supõem divertidas. Assolado que sou pelos ditames de minha consciência, confesso aqui em detalhes o fato, na tentativa de purgar a culpa que me flagela.
 Aconteceu meses atrás, em um animado almoço comunitário na acolhedora localidade de Mato Perso (‘mato perdido’, em dialeto, e minha mente ali, já maquinando bobagens). Minha mãe, que mora na distante e pacata Ijuí, estava a nos visitar naquele final de semana e a arrastamos junto ao programa sabatino para o qual já havíamos sido convidados por um casal de amigos. Sob o irrecusável argumento de que ali é servido o mais saboroso pien da região, ao lado de uma sopa de capeletti que parece anholine de tão boa e de uma carne lessa de fazer padre ajoelhar, mamãe concordou alegremente em nos acompanhar no passeio. Tadinha dela.
Durante o evento empanturral, um tenor italiano importado especialmente para a ocasião cantava a plenos pulmões enquanto comíamos, o que era ótimo, porque ninguém podia, assim, escutar as mastigadas dos outros à mesa. Quando enfim, devidamente fartos de pien e maionese, resolvemos partir, fui buscar o carro para perto do salão comunitário onde esperavam minha esposa e minha progenitora, e de dentro do qual ainda ecoavam os gritos retumbantes do animado tenor. Estacionei com o motor ligado e, enquanto elas entravam, fui comentando sobre a altura da cantoria, que achei ligeiramente indigesta. Dito isso, arranquei.
E eis que então minha mãe começou a gritar igual ao tenor italiano: “aaaiiia aaaiiii oooo iii aiaiii!”, ao que eu julguei que ela, num acesso de indignação, estava a imitar o turbinado cantor. Nada disso. Eu é que, ogro desatento como sou, arranquei o carro com ela ainda em pleno processo de entrada, e arrastei-a por alguns metros - uma perna dentro, outra fora, o salto riscando o cascalho de Mato Perso -, obrigando-a a disputar com o tenor o vigor de seus pulmões.  Só parei quando minha esposa percebeu e gritou “amor, para!”.

Felizmente, o resultado da desatenção não foi além do susto e de uma ralhada que o filho da mãe aqui não ganhava merecidamente há mais de 40 anos. Moral da crônica: sejam atentos no trânsito; cuidem de suas mães; ouçam suas esposas; experimentem o pien de Mato Perso (quando não houver tenor italiano por perto).
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de fevereiro de 2014)

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