segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O abre-alas

Transitava por uma das estradas da Serra, dessas estreitas cheias de buracos, desprovidas de faixa dupla e de terceira pista, nas quais formam-se extensas fileiras de veículos penando a vinte por hora atrás de caminhões de carga. Paciente e zeloso, conduzia meu carrinho ensanduichado entre um ônibus que vinha atrás e uma jamanta uruguaia com “freno a aire” à frente. Alternava primeira com segunda, segunda com primeira, freio, embreagem, segura um pouco, olha só o louco que vem de trás querendo forçar espaço para ultrapassagem onde não há lugar para nem mais um mosquito.
De repente, pelo retrovisor, percebo uma movimentação diferente: todos os veículos atrás de mim saindo para o lado, ocupando parte do arremedo de acostamento, para dar passagem ao que vem subindo célere, determinado, convicto: um tanque de guerra. Isso mesmo, um verde-oliva tanque de guerra, com canhão na frente, esteiras e muito aço, abrindo alas. Surreal, onírico. Tão surreal e onírico que de fato acordo, sento-me no meio da cama, irritado com a consequência da liberdade artística total que andei delegando ao misterioso roteirista de meus sonhos. Ora essa, um tanque de guerra subindo a Serra! Só em sonho mesmo. Mas... será?
Sabemos, desde Freud e Jacó, que os sonhos contêm significados psíquicos que vão muito além da aparente insensatez gerada por roteiros malucos. Quem sabe não tenha eu recebido uma dica para a abertura de um lucrativo negócio, um filão de mercado que ninguém ainda atinou em explorar? Abrir uma revenda de tanques de guerra, por exemplo. Não faltariam clientes interessados em adquirir esse tipo de veículo justamente para enfrentarem melhor a guerra declarada do trânsito nas estradas brasileiras. Na verdade, para uma certa espécie de motoristas, só o que lhes está faltando mesmo são os tanques blindados e ameaçadores, porque o comportamento assassino, imprudente, arrogante e incivilizado, adequado para dirigir esse tipo de condução, eles já possuem, e de sobra.

Já que a ordem nas estradas e nas cidades ultimamente tem sido a do salve-se quem puder, e saiam da frente que eu estou chegando, e te escapa que a faixa é minha, e tira essa carroça que o meu é mais lindo e mais potente e maior e não quero nem saber, que tratem então de usar tanques de uma vez por todas. E mantenham os canhões apontados, que é para espalhar logo o terror, já que ninguém mais precisa fechar os olhos e deitar na cama para vivenciar pesadelos nesses dias de hoje.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de dezembro de 2013)

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