segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Sem pé nem cabeça

Não sei explicar a razão disso, mas às vezes dou para encasquetar com a falta de sentido de algumas expressões que a gente utiliza no dia a dia, sem nunca atentar para o fato de que estamos a repetir sandices. “O cair da noite”, por exemplo. A noite não cai, né, gente. Ela vem chegando de mansinho e vai se debruçando como um véu sobre a paisagem, abraçando primeiro o topo dos edifícios, depois tocando o telhado das casas, logo invadindo o passeio, acionando o acendimento automático das luzes nos postes das ruas, escurando as vielas, ensombrecendo as salas e os corredores. As minhas noites faz tempo que não caem. Eu as amparo no colo e as acolho. As noites, em mim, se deitam.
“Tomar sorvete”. Mas quem é que toma sorvete? Sorvete se come. Ele não é líquido. Quer dizer, se você ficar segurando a casquinha abobadamente por mais do que cinco minutos sob um sol ardente (“sol ardente”, tudo bem, mas “escaldante” já gera controvérsias) sem tascar-lhe uma lambida, ele obviamente que vai derreter-se todo sobre seus dedos e você terá de sorvê-lo se não quiser ficar no prejuízo, mas aí já é babaquice sua e nada tenho a ver com isso. Mas eu como sorvete. Uso uma pazinha para isso. Se fosse tomá-lo, eu o faria com um canudinho (milk shake não conta, é sorvete derretido, tá?). Não mastigo, mas como. Como sorvete; não tomo sorvete.
E “pegar no sono”? Alguém realmente pega no sono? Minha mulher capota no sofá defronte à televisão toda a noite depois de suas longas jornadas de trabalho, mas aí sim é que ela não pega nada, muito menos o sono. O sono vem vindo, vem vindo, se esgueira de mansinho por debaixo da porta da sala, passa por minhas pernas e zapt, captura-a e imediatamente a põe a dormir. Ela então é invadida pelo sono. Em se tratando de sono, a pessoa é o sujeito passivo da ação, e não o ativo. Ela é pega pelo, e não pega o, tá entendendo?
E me digam que lógica tem “fazer de conta”? “Ele fez de conta que escreveu uma crônica espertinha no jornal de hoje”. Ma, che, “fez de conta”, o quê! Alguém me explique o nexo que tem essa expressão, hein? E não me venham bater boca e dizer que já comecei esse texto me desdizendo ao afirmar que “dei para encasquetar”, porque se o sujeito encasqueta, ele encasqueta de graça, sem dar nada por isso. Agora que me dei por isso. Opa... outra!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de setembro de 2013)

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