quarta-feira, 19 de junho de 2013

Uma crônica indigesta

Ekhaterina Fernandova adentrou o salão exibindo na bandeja as primeiras tigelas de salada russa, o que funcionou como sinal para que, enfim, começasse o jantar dançante. Como malabaristas em invisíveis cordas bambas entrelaçadas no salão, dançávamos ao som de salsa e merengue equilibrando aos pares nossos pratos enqueijados com filés à parmegiana e agradecendo “thank you” aos garçons que se esgueiravam despejando as batatas inglesas por sobre os montículos aéreos e florestais de arroz arbóreo.
À nossa frente havia casais apressados que nitidamente comiam cru enquanto mal passavam ao lado os filés pelos quais sangrávamos de desejo. Estiquei o pescoço por cima da multidão e vislumbrei ao longe, entre o mar de cabeças de repolho, o brilhante dente de alho na boca de meu amigo. Ele exigia de Julienne o direito de salpicar, na retalhada salada, agora em junho o sal que ela insistia em só colocar a gosto.
Perseguido pela torre e pelo bispo, cruzou correndo por entre minhas pernas o frango xadrez, que acabou detido na porta da cozinha pelo golpe certeiro do maitre empunhando um peixe-espada. Cena bastante deprimente que fez somente o Chico balancear de tanto rir. Indignadas, algumas senhoras ergueram-se do banco em que há horas tomavam chá para obrigá-lo a consumir um pão que o diabo havia amassado e estava aziago.
Romeu e Julieta, apesar de bem-casados, não puderam entrar porque ele estava com a calça virada e ela tinha cara de Marta Rocha. “Isso aqui vai terminar em pizza”, gritou raivoso, xingando o brigadeiro. A galinha era caipirinha e já chegou trôpega, assustando quem comia funghi secchi e fungava molhado. O segurança era banana e não conseguiu segurar nem mesmo o pé do moleque.

O frei capuchinho bebericava café antes de passar o expresso e tentava pagar a conta com um xeque-mate. As canoinhas estavam furadas e ninguém conseguiu descascar o abacaxi. Babette reclamava que a torta viera salgada e o arroz estava doce. Apavorada com o que presenciava, minha esposa engoliu em seco e correu a dar o bolo enquanto eu nada mais pude fazer senão tomar jeito e sair à francesa daquele sonho indigesto.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de junho de 2013)

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