sexta-feira, 5 de abril de 2013

Temor mortal


Para que buscar inspiração nos sonhos mais insanos se a pura e prosaica realidade é capaz de providenciar ao escritor os insumos mais férteis para povoar sua lavoura literária de histórias-sementes que germinarão metáforas e reflexões de melhor qualidade? Basta observar com atenção a vida que pulsa ao redor, conduzida pelos personagens-protagonistas que o cercam, cada um com suas manhas, manias e sanhas, que o desinspirado cronista logo recarrega as baterias da alma criadora e volta a ser capaz de preencher as linhas que lhe são periodicamente destinadas ao contato com seu público ávido pelas novidades que lhe saem do tento (digo isso porque sei da existência de cronistas possuidores de público ávido pelas novidades que lhes saem do tento).
Posso, por exemplo, compartilhar aqui nesta coluna, com meus abnegados e generosos leitores, a história contada por um amigo meu a respeito das preocupações mórbidas que andam assolando as ideias de sua mãe já octogenária, ideias essas que deram pano para manga e fome para vários pedaços de pizza noite dessas. Pois eis que ela, a senhora já tão bem vivida, está por demais preocupada com o que haverá de acontecer em seu inevitável futuro vindouro velório, que um dia lhe haverá de chegar, pois é certo, assim como o é para cada um de nós que tivemos a ousadia de nascer, ora pois. Assola a anciã não o medo da morte em si, mas sim o possível descontrole do que poderá vir a ocorrer no transcurso dos atos fúnebres relativos à sua pessoa.
Tem gente, por exemplo, que ela quer que vá ao seu velório, mas que, devido a intrigas ainda não resolvidas em vida, não tem garantia de que compareçam.  Por outro lado, há uma lista de pessoas que ela definitivamente quer que mantenham distância de seu caixão, gente que ela não quer ver nem morta, e não se trata aqui de figura de linguagem. Nutre também ela um temor mortal de vir a ficar morta sozinha no transcorrer da madrugada de seu velório, sem ninguém a lhe prantear companhia, o que obriga o filho –meu amigo – a fazer juras e promessas de que tudo transcorrerá da melhor maneira possível. Quem viver, verá, e quem souber de história melhor, que narre outra.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de abril de 2013)

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