sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A mais pura verdade


Mentir, queiramos ou não, admitamos ou não, é um atributo da natureza humana. Quem afirma que não mente, mente. Mentiu quem disse que jamais mentiu. Mentimos todos os dias, para os outros ou – principalmente – para nós mesmos. Mentimos em voz alta ou no silêncio de nossos ensimesmares. Mentimos no anseio de amenizar o peso da realidade que, via de regra, pesa demais em diversos aspectos. Nos aspectos em que a realidade não pesa, usufruímos da verdade redentora que advém de sua aceitação. Mas sempre que pesa, mentimos. Mentimos, na maioria das vezes, pequenas mentirinhas inócuas que não ferem ninguém e nos auxiliam a conduzir nossas vidas de maneira mais indolor. Mentir mentirinhas é humano, catártico, saudável, até.
Respondemos mecanicamente que “sim” sempre que nos perguntam se tudo vai bem. Nem sempre vai bem tudo, mas quase sempre vai bem a resposta (mentirinha) de que “sim”. A mais frequente mentira entre os casais, por exemplo, se dá nos momentos de introspecção. Você percebe sua parceira pensativa, há vários minutos silenciosa, aparafusada no sofá da sala, o olhar fitando o vazio, a revista aberta repousada no colo sem ter página virada há muito tempo, e você faz a pergunta: “em que está pensando, amor?”. Ao que ela, de imediato, responde: “Em nada”.
Pois, mentira. Ela está pensando é em tudo. Em tudo e em mais um pouco, e esse tudo inclui necessariamente você, seus atos, suas desatenções, suas insensibilidades, suas ausências, suas descortesias. Ela mente para não escancarar o peso da verdade. Ela pensa em tudo, mas diz ser em nada, obrigando-o, assim, a também refletir sobre as verdades de sua própria existência. Tem sido assim desde que Ug retornou à caverna ao pé do vulcão de mãos abanando, culpando-se por não ter caçado o mastodonte, e sentiu o peso do silêncio reprovador de Aga. “Tudo bem, amor?”, inquiriu Ug. “Claro”, disse Aga. Claro que não estava tudo bem, conforme Ug perceberia dali a pouco, gerando um padrão para a humanidade.
Ao chegar ao final deste texto, leitor, eu lhe pergunto: “Em que esta crônica o fez pensar?”. “Em nada, não”, você me dirá, dando a resposta correta, pois nela reside a verdade de nossas mentirinhas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de dezembro de 2012)

domingo, 23 de dezembro de 2012

O centenário do mestre Braga




Os apaixonados pela boa literatura escrita em língua portuguesa produzida no Brasil têm uma boa razão para celebrar a data de 12 de janeiro de 2013. Ela marca o centenário de nascimento do maior cronista gerado em solo pátrio, um dos grandes mestres desse gênero literário que, aos poucos, em função dos esforços de seus discípulos, começa a receber a importância literária que lhe é devida. Trata-se do capixaba Rubem Braga, nascido em 12 de janeiro de 1913 na cidade de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, que legou às letras nacionais uma vasta obra composta quase que totalmente pela produção de crônicas publicadas nos diversos jornais com os quais colaborou, perenizadas sob a forma de antologias em livros que seguem encantando leitores e ensinando os escritores os segredos da produção dessas pequenas grandes obras-primas carregadas de sensibilidade, lirismo, literariedade e gênio.
Cachoeiro de Itapemirim é um município brasileiro que tem o orgulho de poder se ufanar por legar ao país duas celebridades em duas áreas de expressão artística nacionais: Rubem Braga na literatura e outro Braga, Roberto Carlos, na música (apesar de compartilharem sobrenome e cidade natal, não são parentes). Devia haver alguma coisa especial, mágica e inspiradora na água bebida pelas mães cachoeirenses ao longo da primeira metade do século passado para gerar gênios da criação como a dupla Rubem e Roberto. Boa sugestão de homenagem seria ler algumas crônicas do escritor tendo como trilha sonora de fundo algumas das mais belas canções compostas pelo cantor, que tal?
Rubem Braga começou cedo a se dedicar ao ofício da escrita diária, uma vez que, já aos 15 anos de idade, era repórter do jornal “Correio do Sul”, em Cachoeiro de Itapemirim. Aos 19 anos formava-se em Direito em Recife, mas jamais exerceu a profissão. Seu currículo como jornalista, atividade que praticou até a morte em 19 de dezembro de 1990, inclui passagens por jornais em São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre e Rio de Janeiro (onde trabalhou na Rede Globo de Televisão como redator). Acompanhou, como correspondente de imprensa, a Revolução de 1930 e a Revolução Constitucionalista (1932), bem como foi correspondente de guerra nos anos de 1944 e 1945 acompanhando a atuação dos pracinhas da FEB nas batalhas na Itália durante a II Guerra Mundial. Seus relatos do front e do cotidiano no campo de batalha mesclam o tino típico do poder de observação do repórter com o lirismo poético narrativo que marca toda a produção literária do cronista.
Rubem Braga, devido à qualidade ímpar do seu estilo, praticamente lança as âncoras que vão definir o estilo literário da crônica no país, ao lado, claro, de outros grandes nomes como João do Rio, Sérgio Porto, Stanislaw Ponte Preta, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Millôr Fernandes e outros. Sua fórmula consistia em deitar um olhar romântico e lírico sobre os temas do cotidiano, expressando suas impressões no papel por meio de uma escrita desprovida de rebuscamento e de excessos. A estética da simplicidade é a tradução de seu gênio, como, aliás, o é na obra da maioria dos gênios. Seu legado pode ser saboreado nos livros que permanecem e também nas crônicas produzidas na atualidade por alguns de seus discípulos que beiram os pés de sua qualidade, como Luís Fernando Verissimo, Fabrício Carpinejar, Jimmy Rodrigues e alguns poucos outros.
(Texto publicado na revista Acontece Sul, na seção Planeta Livro, edição de dezembro de 2012)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O colo premiado


Súbito, sem prévio aviso, em um jorro curto e certeiro, o vômito do afilhado inunda parte da minha camisa e das calças, impregnando a atmosfera com um aroma oriundo da mescla entre leite materno, suco gástrico e restolhos de papa com feijão e beterrabas, já que ele, aos sete meses de idade, adora beterrabas, cioso que já é de suas preferências gastronômicas. “Acho que ele vomitou”, anuncio, desconcertado, para os adultos que nos circundam, na esperança de que alguém com maior prática (especificamente o pai ou a mãe de João Vitor) adote os procedimentos de praxe nessas ocasiões que, para mim, ainda são novidade.
“Aunhamm ngaaa”, me confirma o pequeno, sorridente, enquanto é retirado de meu colo sob os risos gerais dos demais (todos eles secos), para ser limpo com o paninho cheiroso azul que fico cobiçando naquele instante, porém, a mim, adulto, resta dirigir-me ao banheiro e me limpar com papel higiênico, o que remedia a situação apenas  parcialmente, já que, ao retornar ao meu lugar, mergulho o traseiro na sobra do vômito que havia também encharcado o assento do sofá.
Casa com nenê novinho é assim mesmo, repleta de situações inesperadas, com as quais os pais novatos vão rapidamente se habituando e os dindos inexperientes vão ampliando as cinturas a fim de terem o jogo necessário para corresponder às demandas que o ato de apadrinhar exige, como aprender a não chacoalhar demais a criança no colo logo após ela ter se alimentado, por mais que a achemos encantadoramente linda e fofa por trás daqueles sorrisos largos e generosos aliados aos bracinhos estendidos que requerem colo, frente aos quais não conseguimos resistir, tampouco manter a fleuma.
“Putz, sentei no vômito”, foi minha segunda observação da tarde, e lá voltei eu ao banheiro, agora irremediavelmente cheirando a leite. Até então, andava faltando somente eu para ser premiado com os regurgitos-relâmpago do afilhado, que, ao chegar a minha vez, foi generoso na dose que me reservava. Apadrinhar também é isso: ser vomitado, achar graça e não ver a hora de chacoalhar o afilhado no colo de novo. Quem disse que padrinho velho aprende alguma coisa?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de dezembro de 2012)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

As cápsulas do tempo


Uvanova é uma pequena e simpática cidadezinha de colonização italiana encravada no alto da Serra Gaúcha na divisa entre Tapariu e o Rio das Antas, conhecida por seu povo amigável e pelo sagu de polenta cuja receita secreta as nonas não revelam nem no confessionário, apesar de muitos padres já as terem tentado a fazê-lo, infrutiferamente. Os uvanovenses são apaixonados por futebol e, agora em dezembro, coincidentemente, os dois clubes citadinos dedicados à prática do esporte bretão celebram 30 anos de chutes, caneladas, raros gols, rivalidade acalorada e muita alegria.
 Fundados no mesmo dia 3 de dezembro de 1982, tanto o Esporte Clube Que Lance quanto a Associação Atlética Canoa Furada dividem as emoções esportivas de toda a comunidade. Este ano, o prefeito Parreirino Della Merlota resolveu realizar um evento cuja intenção era promover a união entre os correligionários, atletas e diretores dos dois times, oferecendo-lhes um sopão de anholine grátis no domingo passado, no salão de festas da igreja.
Aproveitando a ocasião histórica, o secretário municipal de Cultura, Desportos, Educação, Agricultura e Saneamento Básico sugeriu que fossem abertas as duas cápsulas do tempo (urnas contendo material da época e documentos a serem legadas para as gerações vindouras) que haviam sido enterradas três décadas atrás em cada clube, junto com a pedra fundamental de cada estádio (que nunca saíram da planta). Abertas as urnas, a surpresa e a decepção: em uma delas, um disco em vinil contendo o hino do clube; uma fita cassete trazendo declarações dos dirigentes da época e dos jogadores e uma fita VHS com imagens e depoimentos relevantes. Nada foi aproveitado, pois ninguém em Uvanova encontrou um toca-discos para escutar o vinil, nem um gravador para rodar a fita e tampouco um videocassete para exibir o VHS. Já o outro clube, cuja cápsula do tempo trazia um livro narrando a história de sua criação, um jornal com entrevistas com os dirigentes e jogadores e um álbum de fotografias analógicas reveladas em papel, teve sua história revivida e apreciada por todos de forma imediata.
Ninguém mais em Uvanova discute a questão do fim do livro ou dos veículos impressos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de dezembro de 2012)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Estamos rindo de quê?


Que a sociedade humana é uma entidade em constante processo de transformação, isso estamos empanturrados de saber. Detectar as mudanças exercidas no cotidiano a partir da evolução tecnológica, com o surgimento de parafernálias eletrônicas e novas invenções e descobertas em todas as áreas do conhecimento, é a parte fácil de perceber nessa marcha incessável. O mais complicado mesmo é conseguir distinguir as sutis alterações no comportamento das pessoas, que se dão de maneira paulatina, até se consolidarem como novas formas estabelecidas de ser, de pensar e de agir, originando novos conceitos e visões de mundo. Algumas se dão para melhor. Outras, preocupam.
Dentro do quesito das que me preocupam, reside uma transformação que, a meu ver, decorre diretamente do recrudescimento da postura competitiva, narcisista e individualista que parece começar a reger e caracterizar a nova humanidade deste século 21, ainda nascedouro. Trata-se da forma como nós estamos vendo o humor, principalmente o televisivo, nos dias atuais. Para mim, sentado no sofá da sala frente à televisão, a maioria dos novos programas humorísticos nacionais é fonte de preocupação e de horror, muito distantes daquilo que eu assistia com prazer (e rindo desbragadamente) nos anos 1970 e 1980.
Humor, para as novas gerações de humoristas (e, pior, para seu imenso público), é sinônimo de reduzir-se a imitar de forma achincalhada figuras famosas, colocar em saia justa ao vivo e de surpresa essas mesmas personalidades, tirar sarro da cara dos outros, agredir gratuita e irresponsavelmente quem não pode se defender no mesmo momento, enfileirar palavrões, gritar histericamente, reforçar preconceitos e estereótipos, abusar do mau gosto e do riso nervoso e fácil. Foi-se o tempo do humor ingênuo e do humor calcado em textos inteligentes e na atuação competente e criativa de roteiristas e humoristas de primeira linha.  Trocou-se o conceito de “rir junto” pela agressão imatura e prevalecida do “rir às custas de”.
Sinal preocupante (apesar de aparentemente insignificante) das transformações que estamos presenciando na nossa forma de conviver. Nossa passividade, claro, nos torna coniventes, o que é ainda mais preocupante.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de dezembro de 2012)

sábado, 1 de dezembro de 2012

O motobom e o motomau


Nove e meia da noite de uma terça-feira. Minha mulher está em casa, virada do avesso, acometida por forte gripe de verão. Decido tirar o carro da garagem e ir até uma farmácia no centro, buscar remédio que lhe possa aliviar os sintomas e permitir uma noite de sono menos conturbada. “Vou num pé e volto noutro”, digo, chave na mão, já saindo porta afora. Pois fui de carro e voltei de guincho, isso sim.
Adquirida a panacéia na farmácia que eu sabia aberta àquela hora da noite, retornei ao automóvel e ele decidiu não mais sair dali por algum motivo que ultrapassa meus vãos conhecimentos mecânicos. No alto de minha soberba, ainda tentei fazer aquela coisa “pegar no tranco” e andei duas quadras apagado, dando solavancos que resultaram em nada. Na verdade, piorei um pouco mais minha situação, já que parei em um cruzamento, no meio da via, atrapalhando o tráfego. Liguei o pisca-alerta e telefonei para minha corretora de seguros, que encaminhou a solicitação do guincho que meia hora depois nos despejaria (a mim e ao meu moribundo veículo) em casa.
Restava-me a paciência de esperar. Paciência que, logo vi, inexistia em um motoqueiro, que indignou-se com minha posição dentro do carro morto (com pisca-alerta ligado, repito), ao celular (falava com a corretora), e resolveu me xingar, como se eu estivesse deliberadamente determinado a lhe atazanar a vida, eu, que seguramente tenho como esporte encalacrar meu carro no meio da rua no meio da noite, claro. Abriu o sinal e ele foi-se, equilibrando a moto numa mão e desenhando gestos mal-educados com a outra, dirigidos a mim.
Para minha surpresa, não demorou mais do que dois minutos para que a categoria fosse redimida pela ação solidária espontânea de outro motoqueiro, que parou e me veio oferecer ajuda para manobrar dali o carro, encostando-o no meio-fio, de onde pude aguardar pelo guincho em segurança. Costumo pensar que, normalmente, tenho sorte no azar. Esse foi um desses casos. Ainda por cima, rendeu-me crônica e motivo para refletir sobre as motivações humanas. De qual dos dois motoqueiros meu perfil pessoal mais se aproxima frente aos episódios do cotidiano? Bom tema para pensar dentro de uma cabine de guincho...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de novembro de 2012)