segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Um karatê na panqueca

Noite dessas, enquanto fazia umas panquecas na cozinha, peguei de canto de ouvido uma declaração de um menino de uns dez anos de idade que concedia entrevista a uma repórter de televisão sobre a importância da prática de esportes na formação do caráter da gurizada. “Depois que passei a praticar karatê, minhas notas na escola melhoraram muito”, disse o moleque. “Miau”, exclamou, no instante seguinte, Bioy, o gato que vive lá em casa, parado ao meu lado, olhando-me com aquele enorme par de olhos verdes que ele arregala sempre que está matutando algo.
“Pois é”, pensei eu, induzido pelo questionamento proposto pelo gato panquequeiro. “Esperto, esse garoto”, prossegui, enquanto tentava fazer a panqueca saltar na frigideira e arremessava sem querer a massa ainda molenga contra a parede sul da cozinha. “Aprendeu karatê e agora, instantaneamente, obtém boas notas no boletim. Vai ver que ameaça os professores. Ou obriga os coleguinhas que sentam nas cercanias a lhe passarem cola”, imaginei, raspando a ex-panqueca da parede com uma espátula e evitando com o pé a aproximação do gato, que já farejava as migalhas se espalhando pelo chão. Afinal, agora, ele sabe karatê. Amanhã ou depois, vai ser sempre escolhido para jogar no melhor time na hora do recreio, vai receber refrigerante e chokito de presente de toda a galera na hora da merenda, vai ganhar picolé de melancia dos primos no shopping, não vai mais precisar arrumar a cama de manhã quando levanta. Agora, ele luta karatê. Cuidado com ele!
Óbvio que tudo aquilo não passava de elucubração politicamente incorreta minha, derivada das influências mentais maléficas do gato que pretendia justamente me distrair do trabalho com as panquecas que, agora, aos cacos no chão, lhe refestelavam os bigodes. É óbvio que o menininho estava satisfeito e orgulhoso por ter conseguido reorientar seu comportamento a partir da prática do esporte, eu é quem estava desvirtuando o foco da coisa toda. Afinal, gostamos muito, nós, humanos, de rapidamente desvirtuar as boas coisas que nos chegam ao conhecimento. E, logo depois, colocar a culpa em quem não pode se defender. Menos nocivo seria aprender direito a fazer panquecas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de novembro de 2011)

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