sexta-feira, 10 de junho de 2011

Doces despertares

Poucas coisas na vida são mais agressivas do que ser içado do meio do sono pelo serviço sempre histérico de um despertador. É quase um crime de leso-sono. Um atentado terrorista contra a doçura natural do andamento do dormir rumo ao suave despertar, que é o que deveria ser a tônica de todas as nossas manhãs. Precisamos, no entanto, do auxílio do artefato despertatório, uma vez que, atualmente, trabalhamos muito, deitamos tarde, dormimos pouco e, se deixássemos pelo ritmo normal da natureza, acordaríamos sempre por volta do meio-dia e daríamos “oizinho” para o chefe lá pelas três da tarde, o que se transmutaria em um “tchauzinho” da parte dele, acompanhado por um pé (dele) na (nossa) calipígia.
Os fabricantes de despertadores - sejam os tradicionais relógios orelhudos que fazem “trimm” ou os mais moderninhos rádios-relógios que ligam na voz do radialista anunciando a temperatura - sabem que seria inócuo construir artefatos que primem pela doçura. Ninguém despertará de um salto, correrá do avesso ao banheiro, escovará os dentes com o pente de cabelo e voará para o trabalho a partir de uma suave musiquinha de Bach ou da Carla Bruni. É preciso produzir algo que soe como um martelo afundando o cérebro mesmo, e que nos empurre para fora da cama com a persuasão de um urso siberiano nos perseguindo pela Avenida Júlio de Castilhos, conforme o enredo do meu mais recente sonho interrompido por meu adorável despertador amarelo.
Preocupante é o fato de os fabricantes não se responsabilizarem pelo estado dos usuários de despertadores logo após concluído o serviço. Eles não respondem por aquela massa amorfa semidormente que somos quando nos erguemos por impulso da cama após o soar do aparelho, tampouco pelo que fazemos naqueles instantes em que a alma ainda não entrou em nossos corpos. Ontem, por exemplo, amarfanhei-me em meio ao cabideiro repleto de roupas estacionado num canto do quarto e saí de lá com uma lingerie (da esposa) pendurada em uma das orelhas e o cinto marrom que eu tanto procurava enfiado no pescoço. Sorte que notei os adereços antes da primeira reunião do dia. Mas nada que uma boa noite de sono não solucione, quando ela for possível...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de junho de 2011)

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