quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Admiráveis seres de um novo mundo


“Oh, maravilha! Que esplêndidas criaturas! Como é bela a espécie humana! Oh, admirável mundo novo, onde vive essa gente!”. A mais famosa sucessão de frases de espanto da literatura universal provém da pena de William Shakespeare, que as atribui à jovem Miranda, filha de Próspero, o duque de Milão, que 12 anos antes fora desterrado para uma ilha pelo irmão usurpador, na peça “Tempestade”. Miranda, aos 15 anos de idade, fica extasiada ao se deparar, pela primeira vez em sua jovem vida, com seres humanos diferentes das figuras de seu velho pai, Próspero, e do deformado escravo Caliban, até então os únicos habitantes humanos da ilha. Seus olhos brilham ao enxergar não apenas a tripulação de um barco, mas especialmente o belo e jovem príncipe Fernando. Um admirável mundo novo então se descortina a ela ao vislumbrar aquelas “esplêndidas criaturas”.
Na época em que a peça foi escrita, no início do século XVII, ou seja, exatamente 400 anos atrás (veio a público em 1611), a personagem Miranda era uma digna representante da figura submissa e alienada da mulher, tal qual a sociedade machista ocidental a formatou até meados do século passado (há bem pouco tempo, portanto). Não era necessário chegar ao extremo de viver em uma ilha perdida para que as mulheres da época de Shakespeare (e também a maioria daquelas dos tempos de nossos avós) se sentissem alienadas e coadjuvantes de um mundo eminentemente masculino, pautado pelas demandas decorrentes da visão machista de conduzir sobre o planeta a existência da espécie humana.
Como não há mesmo mal que dure para sempre (apesar de alguns deles delongarem-se mais do que às vezes estamos dispostos a tolerar), essa situação mudou bastante nas últimas décadas, especialmente a partir da segunda metade do século passado, com o início do movimento de libertação feminina. O paraíso ainda está longe de poder ser encontrado aqui na Terra, eu sei, mas é alentador perceber que muitas coisas evoluíram.
Hoje, sim, podemos afirmar que vivemos, finalmente, o limiar de um admirável mundo novo, e as esplêndidas criaturas que nele circulam, que o habitam e o fazem espantosamente dinâmico, interessante, pulsante, criativo e revitalizado são justamente as mulheres modernas, esses novíssimos seres que surgiram e vêm tomando forma desde que conquistaram o desejo e o direito de também protagonizarem a História, deixando para o passado o papel de submissas coadjuvantes. Tenho o privilégio e o orgulho de ser casado com uma mulher do nosso tempo, dessas que colaboram para construir e consolidar este admirável novo mundo: inteligente, sensível, profissional reconhecida, competente, batalhadora, leitora, proativa, bela e feminina. Não acho que ela me provoque sombra, pelo contrário: a atuação dela no mercado de trabalho, na sociedade, em família, na vida pública e particular, complementa e enriquece a minha própria existência. Não a temo: amo-a, admiro-a, incentivo-a e tenho orgulho de ser seu marido.
Nós, homens, não estamos totalmente perdidos. Se bem treinadinhos, somos capazes de reconhecer em nossas mulheres as parceiras igualitárias e complementares de nossas vidas, relegando para o passado as relações de poder discriminatórias e opressoras que sempre regeram a convivência entre os sexos. A ilha de Miranda começa a ficar mais enriquecida com a atuação harmônica entre os seres que a habitam, apesar das tempestades que certamente ainda moldam partes do cenário. Enredo que nem o gênio de Shakespeare foi capaz de tecer, mas, sim, a Vida.
(Texto publicado como colaboração especial no primeiro número da revista caxiense Afrodite, lançada em setembro de 2010)

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