quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Capítulo contra o mau-humor

Entre as mil e uma utilidades que proporcionam, livros também servem como
bálsamos para alegrar o espírito e invocar as propriedades terapêuticas do riso

Livros, como bem sabemos, são objetos versáteis aptos a proporcionar mil e duas utilidades a seus felizes proprietários. Os ingleses, por exemplo, aproveitam os de autoria de Paulo Coelho para servirem de calço a portas insistentemente empurradas por seus tradicionais fantasmas. Alguns livros podem ser muito úteis como instrumentos sempre ao alcance da mão para aniquilarmos insetos xeretas (em especial os de capa dura – os livros, não os insetos) ou como suportes para suarentos copos de cerveja a fim de não mancharmos a mesa da sala enquanto assistimos ao televisionamento das partidas de futebol de nosso time do coração. Quem nunca empilhou todos os sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido” para subir e trocar uma lâmpada queimada na cozinha? Com mais um “Ulisses” de Joyce e “Os Sertões” do Euclides acrescidos ao topo da pilha, pode-se até pensar em alcançar o alçapão do sótão e ir lá em cima substituir a telha quebrada que produz a irritante goteira que molha o quarto justamente nos dias de chuva.
Mas eu, particularmente, titular desta coluna, coincidentemente prefiro utilizá-los para tão-somente um propósito: leio-os desavergonhadamente e depois guardo-os na estante e revisito-os com uma freqüência escandalosa. Com o passar dos anos e o acúmulo de experiência que naturalmente decorre do ato repetitivo desta prática, descobri também outro proveito que se pode extrair de alguns livros, a concorrerem com uma música dos Beatles, um lauto jantar, um inebriante vinho marsellan ou um desenho animado do Shrek: a melhora imediata do humor e do astral.
De uns tempos para cá, separei em um cantinho especial da estante um espaço onde guardo, sempre ao alcance da mão, as obras nas quais sei existirem passagens que, mesmo em eu as lendo pela trocentésima vez, me farão voltar a gargalhar, não só melhorando automaticamente meu estado de espírito como também me fazendo economizar o dinheiro que teria de dedicar às terapias num futuro próximo e sombrio. Assim, por exemplo, está lá a primeira parte do “Dom Quixote” (capa dura, edição do extinto Círculo do Livro, jamais utilizada para formar pilhas em substituição a escadas), com um marcador estrategicamente cravado à página 161, justamente no início do capítulo XX, quando o fiel escudeiro Sancho Pança decide animar seu amo narrando-lhe o que considera ser “a rainha das histórias”. A “habilidade” do personagem em narrar diverte o leitor na mesma medida em que exaspera o Quixote, transformado em personagem-ouvinte. Releio a passagem há anos, como que obedecendo a uma prescrição médica contra a instalação do mau-humor. Recomendo.
Seguindo na mesma esteira, guardo ali ao lado meu exemplar de “Sobre Heróis e Tumbas”, do argentino Ernesto Sábato, para revisitar com assiduidade o capítulo 11, em que o personagem principal, inebriado por um espírito irônico, trava uma hilariante discussão em um bar com uma dupla de amigas feministas. A mesma ironia e o humor refinadíssimo, que subitamente provocam incontroláveis acessos de riso, podem ser facilmente detectados nas linhas do italiano Ítalo Calvino em seu “Se Um Viajante Numa Noite de Inverno”, no capítulo “No Tapete de Folhas Iluminadas Pela Lua”. Desaconselho a ler estas passagens em lugares públicos, sob o risco de ser visto como um alienígena em plena Praça Dante.
Mas se quiser mesmo correr o risco, seguem ainda outras indicações: o conto “O Homem que Chamava Teresa”, também de Calvino, incluído na obra “Um General na Biblioteca”; e os contos do russo Anton Tchekhov “Sobrenome Cavalar” e “A Morte do Funcionário”. Leia, e não ria, se for capaz...
(Texto publicado na seção Planeta Livro, da revista Acontece, em junho de 2007)

Nenhum comentário: